Morreu a imunologista Maria de Sousa, vítima de covid-19

Maria de Sousa nasceu em 1939 em Lisboa. O seu percurso como investigadora decorreu entre Inglaterra, Escócia, Estados Unidos e Portugal, onde regressou em 1984, quando a ciência portuguesa estava muito pouco desenvolvida.

A imunologista Maria de Sousa morreu na noite desta terça-feira nos cuidados intensivos do Hospital São José, vítima de covid-19 e depois de uma semana de internamento. Maria de Sousa percebeu a migração organizada dos linfócitos, células do sistema imunitário, e tem hoje por essa descoberta o seu nome em qualquer manual sobre o sistema imunitário.

Maria de Sousa nasceu em Lisboa em 1939. Depois de se ter formado em medicina em 1963, pela Faculdade de Medicina de Lisboa, começou a sua carreira dedicada à investigação científica. Inglaterra, Escócia, Estados Unidos e Portugal – assim se pode desenhar em traços largos a geografia científica da sua vida.

Entre 1964 e 1966, esteve nos Laboratórios de Biologia Experimental em Mill Hill, em Londres, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi em Londres que fez uma grande descoberta que consta hoje em qualquer manual de imunologia.0%Volume

Até 1964, pensava-se que todos os tipos de linfócitos – células do sistema imunitário fundamentais no combate a doenças e infecções – vinham do timo, uma glândula situada no peito, entre o externo e o coração. Pensava-se ainda que, depois do nosso nascimento, os linfócitos migravam do timo e iam proliferar e amadurecer nos órgãos linfáticos periféricos, como os gânglios linfáticos e o baço. Maria de Sousa percebeu que não era bem assim.

Fez experiências em ratinhos, aos quais foi removido o timo logo a seguir ao nascimento. Verificou então que esses ratinhos sem timo continuavam, afinal, a ter linfócitos nos órgãos linfáticos periféricos. Mais: percebeu que nestes órgãos linfáticos periféricos dos ratinhos desprovidos de timo havia espaços deixados vazios – ou seja, espaços destinados precisamente aos linfócitos do timo. Portanto, nos órgãos linfáticos periféricos havia assim áreas para os linfócitos do timo (os linfócitos T) e áreas para outro tipo de linfócitos, que estavam ocupadas por eles. Por outras palavras, havia áreas nos órgãos linfáticos periféricos dependentes dos linfócitos que migravam do timo. Essa zona reservada aos linfócitos do timo é hoje conhecida por Área T.

Estas descobertas foram publicadas na revista Journal of Experimental Medicine e na revista Nature, respectivamente em Janeiro e Dezembro de 1966. O título do primeiro artigo científico com as descobertas de Maria de Sousa é precisamente “Áreas dependentes do timo nos órgãos linfáticos em ratinhos recém-nascidos timectomizados”.

Mais tarde, em 1971, Maria de Sousa deu um nome ao fenómeno de migração dos linfócitos de diferentes origens – tanto do timo como da medula óssea, onde se forma outro tipo de linfócitos – com destino a microambientes específicos nos órgãos linfáticos periféricos e aí se organizarem em áreas bem delineadas. Chamou-lhe “ecotaxis”.

Em suma, é uma viagem com lugar reservado à partida.

Em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, publicada em 2014 no PÚBLICO, Maria de Sousa falava das suas descobertas relativas à Área T e à ecotaxis. “Creio que todos saberão que temos linfócitos a circular. O que muitos não saberão é que os linfócitos não são uma população homogénea, com a mesma pátria. Uns nasceram no timo e saíram para a circulação no período a seguir à nascença (período neontal), outros fora do timo, na medula óssea. Essa distinção não era clara em 1964. Ainda se pensava que talvez viessem todos do timo”, explicava então.

“O meu trabalho consistiu na observação de lâminas de cortes de órgãos linfáticos periféricos de ratinhos que tinham tido o timo removido no período neonatal. As minhas observações demonstravam que esses animais timectomizados à nascença ainda tinham linfócitos. E mais, os espaços vazios de linfócitos eram distintos dos espaços onde havia linfócitos, o que significava que as células pareciam saber para onde ir.” Mais tarde, estes resultados foram demonstrados por uma técnica (a auto-radiografia) que permitia seguir células marcadas radioactivamente. “As do timo iam para o território a que chamámos ‘área dependente do timo’ e que hoje é conhecida por Área T. E achei esse fenómeno de as células saberem para onde vão tão importante que lhe dei um nome: ecotaxis.”

Quando deu o nome à migração dos linfócitos, Maria de Sousa já tinha partido de Londres rumo à Escócia, em 1967. Na Universidade de Glasgow doutorou-se então em imunologia em 1972, permanecendo na Escócia até 1975. Daí seguiu para os Estados Unidos – para o Instituto Sloan Kettering para a Investigação do Cancro (em Nova Iorque), a Faculdade de Medicina de Cornell (em Nova Iorque) e a Faculdade de Medicina de Harvard (em Cambridge, Boston).

Em 1984, regressou a Portugal vindo contribuir para o desenvolvimento da investigação científica no país. Logo em 1985 tornou-se professora catedrática de imunologia no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto.

Mais tarde, contribuiu para a implantação da avaliação externa e independente dos centros de investigação portugueses, que até meados dos anos 90 não existia em Portugal, ao ter sido convidada pelo então ministro da Ciência e da Tecnologia, José Mariano Gago, para coordenar esse processo na área das ciências da saúde.

A 16 de Outubro de 2009, aos 70 anos, jubilou-se da actividade docente no ICBAS, dando a sua última aula intitulada “Uma escola sem muros”.

No rol de distinções e reconhecimento público incluem-se o Grande Prémio Bial de Medicina em 1995, o Prémio Estímulo à Excelência em 2004 e a Medalha de Ouro de Mérito Científico em 2009, ambos atribuídos pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Seguiram-se o Prémio Universidade de Coimbra 2011 e o Prémio Universidade de Lisboa 2017.

Ao mais alto nível, foi condecorada por três Presidentes da República: em 1995 por Mário Soares com o grau de grande-oficial da Ordem Infante D. Henrique; em 2012 por Aníbal Cavaco Silva com o grau de grande-oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada; e em 2016 por Marcelo Rebelo de Sousa com a grã-cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.C