A maioria dos médicos do Serviço Nacional de Saúde já ultrapassou os 50 anos. Mais de oito mil vão deixar de fazer urgências (por terem mais de 55 anos) e a idade mais representada é 63 anos. São conclusões do relatório anual do SNS que acaba de ser divulgado.
ntre os 18 835 médicos do Serviço Nacional de Saúde (números que excluem os internos), cerca de dez mil têm mais de 50 anos. Os dados acabam de ser revelados pelo relatório anual do Ministério da Saúde e do SNS, onde se destacam outros números que apontam para um envelhecimento da classe médica que permanece no ativo do Estado: mais de oito mil já ultrapassaram os 55 anos, idade em que a maioria dos médicos pode prescindir de fazer serviço de urgência.
O documento alerta para uma realidade consentânea com o envelhecimento do país: há quase mil médicos com 63 anos, seguidos de perto pelos colegas com 62 e 64 anos. A grande maioria são mulheres (60,6%).
“Estes dados revelam uma preocupação muito grande. Quando estes médicos se aposentarem, dentro de poucos anos, isso terá um impacto muito grande no SNS, que não é atrativo para os médicos mais novos”, disse ao DN Carlos Cortes, presidente da secção regional do centro da Ordem dos Médicos.
Na verdade, “fizeram-se muitos estudos, mas nenhum foi capaz de prever esse fenómeno”, acrescenta o responsável.
Carlos Cortes faz uma retrospetiva das últimas décadas e explica o que aconteceu: “Quando entrei para Medicina, há mais de 20 anos, ninguém punha a hipótese de não ficar no SNS depois do internato. Isso hoje não acontece. Há uma enorme falta de atratividade no serviço público. O que não quer dizer que no privado se ofereçam muito melhores condições. Mas as pessoas saem por insatisfação, porque hoje um médico passa muito mais tempo a lutar contra burocracias, falta de meios e recursos humanos do que a exercer medicina, como era suposto.”
É desse estado de alma que padece neste momento António Branco. Aos 66 anos, o médico da Unidade de Saúde Familiar de Santa Maria, em Tomar, já fez de tudo no SNS, com relevante destaque para o envolvimento na criação das unidades de saúde familiares. “Tenho 45 anos e meio de serviço. Acho que chegou a hora de me reformar. Além disso, os últimos anos têm sido agonizantes, e sobretudo o último foi um grande cansaço. Há mudanças a toda a hora, pouco sensatas e nada sustentadas, uma tonteira”, desabafa o médico de família, que esteve na génese das unidades de saúde familiares. Aliás, António Branco passou, no total, dez anos em funções de administração, entre a Administração Regional de Lisboa e Vale do Tejo e o Centro Hospitalar do Médio Tejo.
“Meti os papéis para a reforma e estou neste momento à espera de que o conselho diretivo da Caixa Geral de Aposentações se pronuncie”, adianta António Branco. Aguarda a resposta em outubro, que é já dentro de dias.
O gosto pela medicina, o cansaço do sistema
O reumatologista Jorge Silva faz parte dos mil médicos do SNS e tem 63 anos. Há anos que trabalha no Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, ao cabo de uma vida dedicada à medicina sempre no SNS. “Nesta altura, faltam-me dois anos de tempo de serviço. Ainda me sinto muito capaz de tratar dos doentes, pelo menos é a avaliação que eu faço”, sustenta. Mas olha à volta e percebe que são cada vez mais os colegas da sua geração que ocupam os gabinetes e corredores do hospital. “Era preciso um rejuvenescimento da classe médica, sim”, conclui.
Na mesma região centro, Isabel Gonçalves, também com 63 anos, gosta de lembrar que ela e os colegas de curso são da idade do próprio SNS. “Fomos nós que lhe demos início, em 1979, quando terminámos”, conta ao DN a médica da Unidade de Saúde Familiar do Marquês, em Pombal. Antes dessa reorganização dos cuidados de saúde primários, Isabel Gonçalves dirigiu aquele centro de saúde. Mas antes passou por outros, na região. Diz que continua a gostar muito do que faz, pese embora o número excessivo de doentes, a quem continua a dedicar “muito mais do que dez minutos por consulta”. “Faço o que quero, como quero, como entendo que deve ser. É verdade que vou penalizando a minha vida familiar, pois saio todos os dias muito depois da hora. Mas é o que gosto de fazer.”
Procura não pensar na reforma, mas, quando para, imagina-se com tempo para fazer “tantas outras coisas” (dirige nas horas vagas a delegação centro da Alzheimer Portugal). “Se me dissessem que me davam a reforma já amanhã, aceitava de bom grado, pela forma como estão as coisas. Não saía com peso nem com saudade. Mas não posso ser penalizada, por isso vou trabalhando.”
No todo nacional, a região centro é a terceira maior do país em número de médicos (5376), antecedida de Lisboa e Vale do Tejo (10 822) e Norte (10 948). A secção regional da Ordem fez entretanto outras contas, mais detalhadas: há dois distritos onde a faixa dos 60 anos ou mais é superior a 40%. “Curiosamente, um deles é no litoral”, conta Carlos Cortes, referindo-se a Leiria. Ali, há 453 médicos nessa faixa etária, contra os 335 com idade até 35 anos. O outro distrito com uma realidade similar é Castelo Branco. Por oposição, Aveiro e Viseu “estão a conseguir captar muita gente nova”, sublinha o presidente da Ordem na região centro. Dos 1312 médicos que trabalham no SNS em Viseu, 525 ainda não chegaram aos 35 anos. E em Aveiro, dos 2332 médicos, há 913 nessa faixa etária.
“Penso que o maior vale que atravessamos é na minha geração. Dos 35 aos 60 anos é que há muito menos médicos no SNS”, adianta aquele responsável.
“A única hipótese que temos é criar outra atratividade para os jovens médicos. Se não se fizer isso, dentro de poucos anos vai ser dramático.”