Há uma nova ameaça nas salas de aulas, chama-se Fortnite

O jogo online mais popular do mundo, que supera os 200 milhões de utilizadores registados, encanta crianças cada vez mais novas. Numa escola primária do Montijo, as aulas passaram a decorrer de forma diferente por causa do Fortnite. Também os psicólogos começam a receber casos de pré-adolescentes com dependência do videojogo e pedem aos pais para estarem atentos.

Nuno Cantoneiro é professor primário na Escola Básica Ary dos Santos, no Montijo. À sua frente tem todos os dias uma turma de quarto ano “com muito bons alunos”; dez raparigas e dezasseis rapazes. Mas em novembro do ano passado começou a notar alterações no comportamento dos rapazes: ficaram “mais agressivos, nervosos, entre eles havia conflitos, picardias frequentes, até chantagem”. E chegadas as avaliações intercalares, as notas “desceram, mesmo no caso dos muito bons alunos”, confirmando o já suspeitado. Na sala reservada aos docentes, a outra professora de quarto ano da escola queixava-se do mesmo.

Em comum, estes alunos tinham uma “fixação” pelo Fortnite . Um videojogo em que cem jogadores/personagens têm como objetivo eliminar os outros avatares e sobreviverem aos ataques dos inimigos, enquanto o cenário vai sendo reduzido para incentivar o confronto. Existem dois modos de jogo: o Battle Royale (gratuito) e o Save The World (pago).

Para os professores não foi difícil fazer a associação entre a atitude dos alunos e o jogo: os estudantes traziam o mundo virtual para o real sempre que lhes era dada uma hipótese. Quando lhes era pedido um desenho, na folha surgia “uma relação com o Fortnite, cada vez que tinham um bocadinho começavam logo a falar do jogo” ou faziam o “floss” – o popular movimento das personagens em que os braços balançam de um lado ao outro junto à cintura. Além disto, “entre eles [alunos] notava-se ainda um clima de chantagem. Ouvi várias vezes conversas como: ‘Se não fores às tantas horas jogar, eu conto não sei o quê.’ Eles criavam represálias. Mas isto só acontecia com o grupo dos rapazes”, conta Nuno Cantoneiro ao DN.

“Nunca tinha notado isto por causa de um videojogo. No passado, todos jogaram ao berlinde, depois ao pião, mas agora todos jogam Fortnite. Tornou-se uma fixação“, acrescenta.

O sistema europeu de classificação etária de jogos – Pan European Game Information – declarou que o Fortnite deve ser jogado a partir dos 12 anos por conter cenas de violência, mas na prática os jovens começam a juntar-se a este mundo mais cedo.

Pedro Hubert é psicólogo e dá apoio, no Instituto de Apoio ao Jogador, a pessoas viciadas no jogo. Os casos que tem acompanhado relacionados com videojogos eram sobretudo de estudantes universitários, que se mudaram para Lisboa sozinhos e a quem os estudos não estavam a correr tão bem.”Mas comecei a ter alguns pacientes com 15 anos e já tive um com 13, que devem ter começado a ter problemas antes, porque eles só chegam aqui quando o problema é muito grande e manifesto”, refere o psicólogo ao DN.

O professor Nuno optou por esperar pela reunião de avaliação intercalar para ter uma conversa com os pais. E os encarregados de educação não ficaram indiferentes ao tema. “Alguns pais disseram logo que andavam a notar diferenças no comportamento dos filhos. A mãe de um aluno, que é muito bom aluno, disse logo que notou que o filho estava mais intempestivo, que antes não era preciso nunca mandá-lo fazer os trabalhos de casa e que passou a ter de o obrigar.”

“Os pais limitaram o uso do jogo e notou-se logo a diferença: passaram a falar menos do Fortnite durante as aulas e as notas voltaram a subir”, afirma o professor.

O que é que os faz jogar?

“Já tive pais que dizem que os filhos estão o fim de semana todo a jogar, dez, 12, 14 horas seguidas. E nos dias de semana, quando vêm da escola e vão para casa dos avós, também estão horas a fio a jogar”, reconhece o psicólogo Pedro Hubert.

Segundo o especialista, o fenómeno atinge faixas etárias mais baixas, porque o jogo tem um conceito simples e é “fácil de perceber as regras”. “E depois não é só o jogo, é também toda aquela componente streaming – ver os outros a jogar, ver as dicas para jogar melhor, as danças”, diz Pedro Hubert.

Além destes aspetos, o psicólogo chama ainda a atenção para o facto de este ser um jogo gratuito e estar disponível em todas as plataformas (tablets, telemóveis, computadores, consolas).

“Estes jogos são todos muito bem construídos por forma a agarrarem o utilizador e a terem muito atrativos: os gráficos, o enredo, o facto de nunca acabar, o facto de se poder jogar sozinho ou em equipa, a existência de um ranking. Há uma receita para os videojogos e este foi muito bem conseguido”, continua.

O fundador do projeto MiudosSegurosNa.Net, Tito de Morais, vai mais longe e questiona se são os jogos que “podem conter mecanismos viciantes” ou se são as pessoas que usam “os videojogos como meios de escapar a realidades que lhes são desagradáveis e para as quais não desenvolveram mecanismos e resiliência para os enfrentar”.

Impacto do jogo nos mais novos

Tanto Pedro Hubert como Tito de Morais reconhecem que o videojogo com mais de 200 milhões de utilizadores “tem coisas positivas”. O que os preocupa é a quantidade de tempo despendido com o Fortnite. Jogar pode melhorar “a tomada de decisões, a resolução de problemas, o trabalho de equipa, o pensamento estratégico”, refere Hubert.

“Agora quando é demais pode trazer situações muito graves ao nível de ansiedade social, problemas de depressão, agravar problemas de socialização, aumentar o isolamento e uma grande irritabilidade que vem da falta de sono”, enumera o psicólogo.

Horas em excesso nos videojogos podem ainda levar uma diminuição do aproveitamento escolar, a uma perda de interesse noutra atividade e a conflitos com os outros. Em junho, a Organização Mundial da Saúde incluiu na listas das doenças o vício em videojogos.

“A minha psicóloga disse-me que este jogo não é muito adequado para as crianças, mas eu gosto”, confessa Guilherme Oliveira, de 11 anos, que vive em Lisboa e também jogaFortnite. “Ela [a psicóloga] disse-me que é como quando os adultos tomam drogas. Depois as crianças ficam alteradas e batem nos pais. Eu nunca vou bater na minha mãe, eu sei que temos de respeitar os mais velhos.”   

Descobriu o jogo na escola, no ano passado, e como ainda não tinha uma plataforma para jogar começou por ver vídeos no YouTube de outros jogadores e das danças associadas ao Fortnite. Agora, já tem uma Nintendo Switch, que recebeu da irmã no Natal e que é o pesadelo da mãe.

“Este jogo tira-me do sério. É viciante. Os miúdos não querem jogar outra coisa e é um bocadinho violento: é só matar”, diz Maria Oliveira, mãe de Guilherme.

Maria Oliveira consegue reconhecer as consequências do tempo excessivo em frente ao jogo no filho. “Ele é uma criança ansiosa, por isso não o posso deixar estar em contacto com este tipo de jogos muito tempo.” Guilherme fica mais enervado, principalmente no momento em que tem de largar a consola. Por isso, Maria limita o tempo que o pré-adolescente passa a jogar: “Só pode jogar vinte minutos três vezes por semana.” O controlo é matemático: Maria tem uma aplicação no telemóvel onde define o tempo durante o qual Guilherme tem acesso ao jogo.

Atenção, pais

Pedro Hubert e Tito de Morais aconselham precisamente os pais a estarem atentos à forma como os filhos jogam online. Para isto, segundo os especialistas, é importante:

– perceber quem está do outro lado do ecrã quando os jogos envolvem outras pessoas;

– conhecer o jogo, se possível experimente, e confirme que é adequado à idade do jogador;

– conversar com os filhos sobre aspetos relacionados com a segurança no jogo;

– apesar de o Fortnite ser gratuito, o jogo inclui compras dentro da aplicação, para a aquisição de extensões, personagens, bónus, roupas, armas e equipamentos. Segundo Tito de Morais, o ideal é proteger estas compras com uma palavra-passe.
Para colocar filtros parentais, pode utilizar estes sites: https://www.netnanny.com/ , https://www.cybersitter.com/ , https://www.qustodio.com/pt

– definir um limite de tempo para o jogo;

– impor requisitos para jogar, como ter boas notas;

– estar atento à relação do filho com o jogo, para que este último não possa ser usado como um refúgio;

– pode ainda contactar a Linha de ajuda SOS perturbação de jogo (968 230 998), que apoia pessoas com problemas de abuso, dependência ou adição ao jogo.