Por fora, parecia ser uma organização religiosa, que ajudava jovens noviças a encontrar o caminho de Deus. Por dentro, era uma clausura onde essas jovens eram humilhadas, torturadas e escravizadas.
Durante 30 anos, a Fraternidade Missionária Cristo Jovem, uma instituição em Requião, Vila Nova de Famalicão, abusou de um número indeterminado de raparigas. O Padre Joaquim Milheiro, hoje com 87 anos, e três mulheres (Maria Arminda Costa, Maria Isabel Silva e Joaquina Carvalho), que se faziam passar por freiras, estavam à frente dos destinados de quem por aquela porta entrasse.
A estratégia era simples: procuravam jovens raparigas “de raízes humildes, com poucas qualificações ou emocionalmente fragilizadas”. Diziam-lhes que tinham sido “escolhidas por Deus” e que deveriam seguir a vida religiosa, sob pena de receberem ‘castigos divinos’ como “mortes na família”.
Na realidade, esta não era sequer uma congregação religiosa, uma vez que não era reconhecida pela Igreja Católica como tal. Era, sim, uma “sociedade apostólica” – um grupo de pessoas que se associaram para fazer uma “obra comum”, explicou o padre jesuíta João Caniço, em declarações à agência Lusa – que estava constituída enquanto Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), sob a alçada da Arquidiocese de Braga.
Visitas fortemente condicionadas
Em vez da “comunidade espiritual de raiz católica” que lhes fora prometida, as jovens encontravam uma espécie de prisão, onde, de acordo com o Ministério Público, eram forçadas a desempenhar “todas as tarefas diárias exigidas para a conservação e manutenção da instituição”, sem receberem absolutamente nada.
Eram obrigadas a fazer jornadas de trabalho de até 20 horas diárias e constantemente insultadas e agredidas (com recurso a chicotes, pás, máquinas agrícolas, mangueiras, vassouras e chinelos).
Caso não efetuassem ou efetuassem incorretamente as tarefas atribuídas, eram-lhes infligidos castigos físicos ( segundo o jornal Público , há mesmo relatos de agressões motivadas pela simples situação de uma jovem ter deixado cair uma folha de alface ao chão). Outras vezes, os castigos passavam por impedi-las de comer e de tomar banho, obrigá-las a permanecer nuas no jardim ou a dormir no chão.
Também o contacto das raparigas com o exterior era totalmente controlado: as visitas de familiares eram fortemente condicionadas, todas as cartas que recebiam eram lidas previamente, não podiam ter acesso a qualquer informação (estavam expressamente proibidas de ver televisão) e eram-lhes até retirados os documentos de identificação.
Várias jovens ficaram com sequelas permanentes. Mas o caso de maior gravidade conhecido aconteceu em agosto de 2004, quando uma jovem que vivia na instituição há pelo menos 20 anos acabou por suicidar-se num tanque da propriedade, em consequência do “estado depressivo profundo a que chegou”.
“Clima de terror”
Houve, no entanto, quem conseguisse fugir. Três raparigas que escaparam foram capazes de apresentar queixa por maus-tratos, escravidão e cárcere.
Em novembro de 2015, o caso finalmente tornou-se público e a Polícia Judiciária fez buscas à instituição. Na altura, o padre e as três falsas feiras foram detidos e levados a tribunal. Ficaram apenas sujeitos a termo de identidade e residência, a mais leve de todas as medidas de coação.
Esta quarta-feira, foram finalmente conhecidos novos desenvolvimentos no caso. A Procuradoria-Geral Distrital do Porto divulgou que o Ministério Público decidiu responsabilizar os líderes da instituição pelo “clima de terror infligido, que mantinha [as jovens] em regime de total submissão, sem possibilidade de reação”.
O padre Joaquim Milheiro, hoje com 87 anos, e as três mulheres estão agora acusados de nove crimes de escravidão. Será desta que este caso encontra, finalmente, uma luz?
Padre regressou “à revelia da Arquidiocese”
De acordo com um comunicado divulgado pelo Público, o padre Joaquim Milheiro terá regressado à Fraternidade Missionária de Cristo Jovem, em Requião, Vila Nova de Famalicão, “à revelia da Arquidiocese [de Braga]”.
A instituição está a “acompanhar o caso”, mas, até ao momento, “não se viu na necessidade de extinguir a fraternidade”.