O Parlamento deverá confirmar na sexta-feira o quarto diploma que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível, vetado pelo Presidente da República, tornando a sua promulgação obrigatória.
A intenção de confirmar o texto foi manifestada por PS, BE, IL e PAN, partidos proponentes do diploma.
De acordo com a Constituição da República, perante um veto, o parlamento pode confirmar o decreto por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, 116 em 230, e nesse caso, o Presidente da República terá de o promulgar no prazo de oito dias a contar da sua receção.
O tema já foi alvo de dois vetos políticos do chefe de Estado e dois vetos por inconstitucionalidades decretadas pelo Tribunal Constitucional.
O debate sobre a despenalização da morte medicamente assistida iniciou-se no parlamento em 2016 e desde então teve avanços e recuos.
Os primeiros projetos e o chumbo
A discussão no parlamento sobre o tema começou, primeiro, através de uma petição a favor da despenalização, entregue na Assembleia da República em 2016. Um outro texto contra a regulação da morte medicamente assistida viria também a ser entregue no parlamento alguns meses depois.
Entre 2017 e o início de 2018, foram apresentados na Assembleia da República os primeiros projetos de lei sobre o tema pelo PS, Bloco de Esquerda (que teve no falecido ex-coordenador João Semedo um dos principais impulsionadores do diploma), o Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV) — que na altura ainda tinha representação parlamentar.
No dia 29 de maio de 2018, num parlamento no qual ainda se incluía o CDS-PP mas não o Chega e a Iniciativa Liberal, os projetos não passaram da generalidade.
A votação foi nominal e os quatro projetos de lei foram rejeitados com diferentes votações, sendo que nenhum conseguiu os 116 votos necessários.
Diplomas aprovados pela primeira vez
Depois das eleições legislativas de 2019, que elegeram deputados do Chega, Iniciativa Liberal (IL) e Livre para a Assembleia da República, PS, BE, PAN, “Verdes” e IL apresentaram iniciativas legislativas no parlamento sobre o tema.
Num debate longo, no dia 20 de fevereiro de 2020, e com uma manifestação contra a despenalização no exterior da Assembleia da República, os deputados aprovaram na generalidade pela primeira vez os diplomas sobre o tema.
O processo legislativo passou para a especialidade na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, e o grupo de trabalho criado para o efeito ouviu na altura várias entidades, a favor e contra.
Na altura, surgiu também uma iniciativa popular, da Federação Portuguesa Pela Vida, assinada por mais de 95 mil pessoas, para a realização de um referendo à despenalização da eutanásia, que acabou por fazer com que os deputados interrompessem o trabalho na especialidade para votar primeiro esta iniciativa.
A proposta acabou rejeitada e o trabalho em comissão foi retomado. A votação final global do texto de substituição teve lugar já em janeiro de 2021, altura em que foi aprovada por maioria, com os votos a favor de grande parte da bancada do PS, do BE, PAN, PEV, Iniciativa Liberal e 14 deputados do PSD e votos contra do CDS, Chega e PCP.
O chumbo do Tribunal Constitucional e o primeiro veto
Em 18 de fevereiro de 2021, no mesmo dia em que recebeu o diploma do parlamento, Marcelo Rebelo de Sousa enviou-o ao Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da sua constitucionalidade, sustentando que recorria a conceitos “altamente indeterminados” para definir, no artigo 2.º, os critérios para a prática legal da eutanásia: “sofrimento intolerável” e “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”.
Em 15 de março de 2021, o Tribunal Constitucional considerou a lei inconstitucional numa decisão tomada por maioria, de sete juízes contra cinco. No acórdão, o TC deu razão ao chefe de Estado relativamente à segunda expressão, declarando o respetivo artigo inconstitucional, por “insuficiente densidade normativa”.
No seu pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma do parlamento sobre esta matéria, Marcelo Rebelo de Sousa escreveu que não estava em questão “saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme a Constituição”.
No entanto, o Tribunal Constitucional entendeu tomar posição sobre essa questão de fundo, considerando que a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição não constituía um obstáculo inultrapassável para se despenalizar em determinadas condições a antecipação da morte medicamente assistida.
Face à declaração de inconstitucionalidade, o Presidente da República vetou o diploma e devolveu-o ao parlamento, como impõe a Constituição.
Na altura, em julho, os cinco partidos com projetos sobre a eutanásia acordaram, em reunião informal, um “texto base” para ultrapassar a falta de “densidade normativa” apontada pelo Tribunal Constitucional.
As alterações ao decreto incluíam, entre outros, um novo artigo inicial de definições para clarificar conceitos, oito no total, desde a morte medicamente assistida à “lesão definitiva”, doença grave ou incurável.
Em 05 de novembro de 2021, o novo decreto foi aprovado no parlamento com uma maioria semelhante à anterior, com 138 votos a favor, 84 contra e cinco abstenções.
A votação decorreu um dia depois de o Presidente da República ter comunicado ao país a dissolução da Assembleia da República e a realização de eleições antecipadas em 30 de janeiro, devido ao chumbo do Orçamento do Estado para 2022 na generalidade.
O primeiro veto político do Presidente da República
No dia 29 de novembro de 2021, Marcelo Rebelo de Sousa devolveu o decreto ao parlamento sem promulgação.
Marcelo Rebelo de Sousa vetou politicamente a lei, realçando que o novo texto utilizava expressões diferentes na definição do tipo de doenças exigidas e defendeu que o legislador tinha de optar entre a “doença só grave”, a “doença grave e incurável” e a “doença incurável e fatal”.
No caso de a Assembleia da República querer “mesmo optar por renunciar à exigência de a doença ser fatal, e, portanto, ampliar a permissão da morte medicamente assistida”, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, optará por uma “visão mais radical ou drástica” e questionou se isso corresponde “ao sentimento dominante na sociedade portuguesa”.
O parlamento foi dissolvido em 05 de dezembro de 2021 e o dossiê da eutanásia acabou remetido para a legislatura seguinte.
A terceira aprovação de um diploma
As eleições antecipadas de janeiro de 2022 deram início a uma nova legislatura e o processo foi retomado pelos deputados num parlamento em que o Partido Ecologista “Os Verdes” e o CDS-PP perderam representação.
PS, BE, PAN e Iniciativa Liberal avançaram de novo com projetos que foram aprovados na generalidade em 09 de junho na Assembleia da República. No mesmo dia, um projeto de resolução do Chega que pedia a realização de um referendo sobre o tema foi rejeitado pelos deputados, com uma grande maioria do PSD a favor.
O texto final foi ‘fechado’ em meados de outubro no grupo de trabalho sobre a morte medicamente assistida e aprovado em votação final global no dia 09 de dezembro.
O Presidente da República envia o diploma para o Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da sua constitucionalidade em 04 de janeiro de 2023.
Tribunal Constitucional chumba pela segunda vez decreto
Em 30 de janeiro de 2023, o Tribunal Constitucional volta a declarar inconstitucionais algumas das normas do decreto que regula a morte medicamente assistida aprovado no parlamento em 09 de dezembro, em resposta a um pedido de fiscalização preventiva do Presidente da República.
Foi o terceiro decreto aprovado no parlamento sobre a eutanásia e a segunda vez que o chefe de Estado requereu à fiscalização preventiva da sua constitucionalidade.
Face ao chumbo dos juízes do Palácio Ratton, o Presidente da República vetou o diploma e anunciou a devolução à Assembleia da República.
Para o TC, o texto aprovado criaria “uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação” da lei sobre a morte medicamente assistida.
Ao caracterizar a tipologia de sofrimento em “três características («físico, psicológico e espiritual») ligados pela conjunção “e”, são plausíveis e sustentáveis duas interpretações antagónicas deste pressuposto”, justificou o TC, num acórdão aprovado por sete contra seis juízes.
Contudo, no mesmo acórdão, o TC considerou constitucionais as definições de “doença grave e incurável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema” contidas naquele decreto, conceitos que tinham suscitado dúvidas ao Presidente da República.
Quarta versão prioriza suicídio assistido e é aprovada
O decreto é devolvido ao parlamento, após a decisão do TC, e o novo texto estabelece que a morte medicamente assistida só poderá ocorrer através de eutanásia se o suicídio assistido for impossível por incapacidade física do doente.
“A morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente”, lê-se no texto.
Uma das inconstitucionalidades apontadas pelos juízes do Palácio Ratton tinha sido o facto de o legislador ter feito “nascer a dúvida”, na definição de ‘sofrimento de grande intensidade’, se a exigência de sofrimento físico, psicológico e espiritual era cumulativa ou alternativa.
Em comparação ao decreto anterior, é retirada totalmente a referência a sofrimento físico, psicológico e espiritual, mantendo-se os termos da restante definição.
Neste novo texto, ‘sofrimento de grande intensidade’ é definido como “o sofrimento decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”.
Já no artigo 9.º, referente à ‘concretização da decisão do doente’ lê-se que “o médico orientador informa e esclarece o doente sobre os métodos disponíveis para praticar a morte medicamente assistida, designadamente a autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente ou a administração pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito, mas sob supervisão médica”, acrescentando-se a frase: “quando o doente estiver fisicamente incapacitado de autoadministrar fármacos letais”.
Deste ponto foi retirada a frase “sendo a decisão da responsabilidade exclusiva do doente”.
O novo texto foi aprovado no parlamento em 31 de março, em votação final global, com votos a favor da maioria da bancada do PS, da Iniciativa Liberal, do Bloco de Esquerda, de seis deputados do PSD e dos deputados únicos de PAN e Livre.
Teve votos contra da maioria da bancada do PSD, Chega, PCP e de cinco deputados do PS. Houve duas abstenções, de um deputado socialista e de um social-democrata.
Novo veto político do Presidente da República
Em 19 de abril, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, veta o quarto diploma do parlamento que despenaliza a morte medicamente assistida, pedindo à Assembleia da República que clarifique dois pontos.
“Concretamente, solicito à Assembleia da República que pondere clarificar quem define a incapacidade física do doente para autoadministrar os fármacos letais, bem como quem deve assegurar a supervisão médica durante o ato de morte medicamente assistida”, lê-se na carta que o chefe de Estado dirigiu ao parlamento.
No mesmo dia, em declarações aos jornalistas, Marcelo Rebelo de Sousa afastou dúvidas de constitucionalidade sobre o decreto, declarando que o vetou por “um problema de precisão” e considerou que a ser confirmado “não tem drama”.
Entretanto, PS, IL, BE e PAN manifestam a sua intenção de confirmar o diploma.
O presidente do PSD não excluiu que os deputados sociais-democratas possam pedir a fiscalização sucessiva do diploma da eutanásia ao Tribunal Constitucional (TC) e o presidente do Chega, André Ventura, apontou que, se a lei entrar em vigor, vai tentar recolher assinaturas junto de deputados de outros partidos para pedir a fiscalização da constitucionalidade “após a promulgação” – precisando para tal de um décimo dos deputados, ou seja, 23 (sendo que o Chega tem 12).