A escolha de um oficial da PSP – o subintendente Rodrigo Cavaleiro – para liderar a nova Autoridade contra a violência no desporto pode trazer uma nova dinâmica ao combate a este fenómeno. Não só pela vasta experiência deste oficial (ver mais abaixo), mas porque a PSP é a policia que mais sabe do assunto. Não é por acaso que a PSP é o ponto de contacto no nosso país, para a troca de informações a nível internacional sobre a deslocação de adeptos, sobretudo os de risco.
Rodrigo Cavaleiro conhece bem a posição da sua polícia, que foi apresentada publicamente pelo seu então comandante, superintendente Luís Simões, numa conferência no parlamento, ainda este ano. Entre as ideias preconizadas, há algumas mais radicais que, no entender da PSP, podiam “acabar com a impunidade” que vinga no ambiente futebolístico.
Entre as medidas que esta policia defende, destaca-se uma “sanção extremamente gravosa e ainda não prevista na legislação que teria um enorme efeito dissuasor”: a “inibição de efetuar a transmissão televisiva” dos jogos, sempre que os adeptos provocassem incidentes. Eventualmente, acrescentou, “realizar também jogos sem adeptos visitantes”.
Controlar e penalizar adeptos de risco
Os últimos dados da PSP (maio de 2018) indicavam que estavam 2219 adeptos envolvidos em situações de violência no futebol. Destes adeptos referenciados pelas autoridades apenas 19 estavam, nessa altura, interditados de entrar nos estádios. Uma proporção que se mantém.
A PSP quer que seja definida uma “estratégia dirigida aos Grupos Organizados de Adeptos (GOA)”, com seis objetivos principais:
1- Afastamento dos adeptos de risco, principalmente os que adotam comportamentos violentos ou ilícitos ou que mostrem capacidade de mobilização dos GOA para episódios de violência (através da aplicação de medidas de interdição judiciais, administrativas e disciplinares);
2- Ação coordenada das autoridades judiciárias, visando a desarticulação de fenómenos de violência e criminalidade organizada, bem como crimes associados a organizações de cariz xenófobo, racista ou extremista;
3- Política transparente de gestão dos apoios dos clubes aos GOA, recusando apoio aos que não cumpram os requisitos legais e firmando protocolos que corresponsabilizem objetivamente as partes visadas. Deverão ser estipuladas condições disciplinadoras que levem os GOA a beneficiar do seu próprio bom comportamento;
4- Estratégia inclusiva dos clubes para com os bons adeptos, patrocinando iniciativas como fan projects e fan coaching, potenciando e dando voz aos GOA que sigam princípios de autorregulação, integração dos adeptos mais novos e promoção de valores éticos, de tolerância e respeito;
5- Mudança de atitude dos clubes relativamente à instrumentalização dos GOA como meio de pressão, cessando o apoio a grupos cujos seus elementos tenham praticado ou participado atos de violência associada ao desporto ou ilícitos ao regime legal que combate essa violência;
6- Ação disciplinar firme, célere e consequente dos organizadores das competições, que corresponsabilize os clubes pelo comportamento dos adeptos e os motive a cumprir o seu papel numa abordagem multi-institucional.
Outra medida é tornar a interdição de entrada em estádios, que agora só é possível judicialmente, uma sanção que pode ser aplicada no regime contraordenacional. “Assim, no âmbito administrativo poderia ser determinada a obrigação de apresentação e permanência junto de órgão de polícia criminal em dias e horas preestabelecidos, podendo ser estabelecida a coincidência horária com a realização de competições desportivas, nacionais e internacionais, da modalidade em cujo contexto tenha ocorrido ilícito objeto da sanção principal e que envolvam o clube, associação ou sociedade desportiva a que o agente se encontre de alguma forma associado, tomando sempre em conta as exigências profissionais e o domicílio do agente”, explicou Luís Simões.
Sem jogos na TV
Nas competições profissionais – nas quais ocorre a maior parte dos incidentes violentos – a prevenção passa, sublinha a PSP por, em primeiro lugar fazer cumprir a lei que até já existe. “O incumprimento pelo promotor do espetáculo desportivo das regras relativas ao apoio aos GOA pode determinar a realização de espetáculos desportivos à porta fechada. Ora, se tal medida fosse efetivamente aplicada teria um enorme efeito dissuasor para clubes e adeptos”, afirmou o responsável da PSP.
Para a PSP seria ainda “útil a previsão de uma sanção/medida acessória que impeça a prestação de qualquer apoio a GOA, durante um lapso temporal determinado (3 jogos por exemplo), quando ocorram incidentes de violência ou ilícitos à legislação de combate à violência com algum desses adeptos”.
Corresponsabilizar o clube promotor pelo comportamento de um elemento do seu GOA é outra ideia defendida. Por exemplo, a PSP nota que nas competições europeias “o número de objetos pirotécnicos deflagrados no interior do recinto é significativamente menor do que nas competições nacionais. Verifica-se assim que existe, para além de diferenças significativas na ação do clube/promotor, uma autorregulação dos adeptos procurando que o seu clube não seja prejudicado com o seu comportamento”.
A PSP não exclui também “uma medida/sanção extremamente gravosa e ainda não prevista na legislação, mas que teria um enorme efeito dissuasor no desporto profissional”: “a inibição de efetuar a transmissão televisiva dos espetáculos desportivos”.
Eventualmente – e não se conseguindo reduzir a violência grupal e os incidentes nos grandes jogos (derbies e clássicos) – “será de equacionar estabelecer uma medida que preveja a realização de jogos sem adeptos visitantes, aquilo que no Brasil se designa por “jogos de torcida única” e que acontece, por exemplo nos granes derbies de São Paulo”, assinala esta força de segurança.
“Pimenta na língua”
A PSP considera que há discursos demasiados inflamados e que há dirigentes e comentadores que merecem “pimenta na língua” (expressão nossa). Esta é uma das preocupações que faz parte do “diagnóstico” sobre os facto que contribuíram para a presente situação:
1- Falta de celeridade processual das autoridades administrativas;
2- Falta de sensibilização do poder judicial, em especial na aplicação das sanções acessórias;
3- “Expedientes” jurídicos vários que atrasam ou anulam decisões administrativas ou judiciais punitivas;
4- Discursos provocatórios, por vezes agressivos ou mesmo violentos, de dirigentes e figuras públicas ligadas aos clubes;
5- Mediatização de todos os fatores de conflitualidade clubística, nos espaços noticiosos e nos espaços de debate, com a perceção generalizada – não sei se estatisticamente confirmada – de que as audiências serão tanto maiores quanto maior for a agressividade, a gritaria e a falta de educação dos intervenientes nos debates, que para desempenharem esses papéis, até auferem, dizem, bons “cachês”.
As narrativas
A PSP identifica cinco tipo de tendências e discursos que imperam no discurso público para “justificar” a violência no futebol:
1- Uma que afirma que os fenómenos de violência são casos de polícia e que só à policia compete prevenir e reprimir este tipo de comportamentos;
2- Outra que afirma que a principal responsabilidade é dos clubes;
3- Outra tendência, seguida pelos responsáveis dos principais clubes, que, normalmente, consideram que os casos em que os seus adeptos são agressores é um problema de polícia e de responsabilidade individual dos seus autores e os casos em que os seus adeptos são vítimas são também responsabilidade coletiva de outro ou outros clubes;
4- Os que afirmam que em Portugal a situação não é grave, que existem países – veja-se a Grécia, a Polónia, ou mesmo o Brasil ou a Argentina – onde a violência é muito maior e mais frequente;
5- Os que afirmam que a situação já foi pior e que hoje árbitros e agentes desportivos estão muito mais protegidos, e que a segurança atual nos grandes espetáculos desportivos é muito maior;
6- Os que defendem que a violência associada ao desporto é uma “válvula de escape” das tensões quotidianas.
Para a PSP “a violência não pode ser desvalorizada” e, sim, “é um caso de polícia” sempre que “é exercida violência e há vitimas”. No entanto, é sublinhado, “o problema da violência no desporto, nomeadamente no futebol, não pode ser resolvido apenas pela dimensão policial, sendo também necessário um papel ativo de todos os poderes públicos – político, legislativo, judicial, administrativo – e de todas as outras entidades e instituições de utilidade pública e empresas privadas – que direta e indiretamente estão relacionadas com a promoção do desporto e com a organização de competições e espetáculos desportivos profissionais ou amadores”.
Um oficial no sítio certo
Rodrigo Cavaleiro, 38 anos, foi apresentando pelo secretário de Estado do Desporto, Paulo Rebelo, como “alguém que tem um vasto currículo e especialização em matérias de segurança, prevenção e combate à violência no desporto”, assuntos que passarão da alçada do Instituto Português da Juventude e Desporto (IPDJ) para a APCVD.
Foi coordenador do Ponto Nacional de Informações sobre Futebol, do Departamento de Informações Policiais da Direção Nacional da PSP de 2010 a 2018, é membro da Direção do Comité Permanente de Acompanhamento da Convenção Europeia sobre a violência no desporto, do Conselho da Europa, e chefe da delegação nacional no mesmo Comité.
A nova autoridade foi criada com o intuito de dar mais um passo importante na luta contra o fenómeno da violência, que “tem de ser erradicado do panorama desportivo” e que assegurará a fiscalização e prevenção do cumprimento do regime jurídico do combate não só à violência, mas ainda ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, previsto na Lei 39/2009.
A 9 de agosto último, o Conselho de Ministros aprovou uma proposta de alteração à referida lei, que deverá ser em breve debatida e votada em plenário na Assembleia de república. Segundo João Paulo Rebelo, a proposta de lei contra a violência no desporto pretende combater o fenómeno através de processos mais céleres, estando previsto ainda um aumento dos valores das coimas e sanções, além da possibilidade de interdição parcial de estádios.