Sílvia, Catarina, Joana, Vanessa, Daniel, Maria João, André, David, Tiago, Henrique e Raphael, Rúben e David, Martim, Leonor, Henrique, Samira e Viviane, Lara, Valentina. Todas elas crianças presas para sempre numa infância interrompida pelos pais. No panorama nacional, a expressão destes crimes hediondos é ínfima. Mas enquanto existirem serão muitos.

Madrugada de 8 de maio de 2001. Susana Vasconcelos, emigrante portuguesa na Suíça, grávida de sete meses, foi detida pela polícia local quando saiu de casa para comprar droga. No apartamento, tinha deixado sozinha Sílvia, de 16 meses. Nada disse às autoridades, com receio de perder a tutela da criança. A 1 de junho, a bebé foi encontrada morta, após 21 dias de abandono.

18 de outubro de 2003. No dia em que fez 30 meses certos, o coração de Catarina Filipa parou de bater. O corpo tão tenro esfriou cheio de marcas. Sinais de violência física: queimaduras de cigarro e pisaduras. Sinais de abuso sexual: penetração vaginal e anal. A investigação da Polícia Judiciária resultou na detenção do pai e da mulher, madrasta e tia da vítima.

12 de setembro de 2004. Joana Cipriano regressou a casa com o leite e as conservas que a mãe mandara comprar no café da aldeia. Leonor e João, mãe e tio, “agiram com plena consciência das consequências dos seus atos ao espancarem violentamente a pequena Joana”, refere o acórdão do tribunal, sustentando que ambos usaram da “sua força desproporcional relativamente à de uma criança” e só pararam de bater “quando a mataram”. O motivo ficou por esclarecer. O corpo da menina nunca foi encontrado.

6 de maio de 2005. Vanessa Filipa, cinco anos, foi metida numa banheira com água a escaldar, o que lhe provocou queimaduras de segundo grau em 30% do corpo e dores indescritíveis. Como chorava, continuou a ser castigada por três dias, até morrer. Os assassinos foram a avó e o pai, que no fim atiraram o corpo ao rio Douro.

5 de setembro de 2005. Daniel Carvalho, um menino surdo-mudo de seis anos, com problemas visuais e deficiente motor, foi encontrado morto em casa com sinais de maus-tratos e abuso sexual continuado por parte do padrasto, um jovem de 16 anos.

28 de maio de 2009. Maria João foi asfixiada pelo pai com um cinto de robe, no sofá de casa. De acordo com o Ministério Público, o crime foi premeditado: pediu à ex-mulher para jantar com a filha, foi buscá-la à escola e levou-a ao parque. Horas depois de cometer o homicídio, confessou o crime.

29 de outubro de 2009. André Fernandes, seis anos, morreu afogado. A mãe atirou-se ao rio Douro com ele nos braços. “Naquele dia, disse-lhe: ‘Meu filho, hoje vamos para o céu’. Eu queria que ficássemos juntos para sempre e queria acabar com o sofrimento dele, que estava sempre a adoecer”, disse aos magistrados a mulher, que acabaria por sobreviver.

5 de abril de 2010. David Cabral, seis meses, ficou em casa aos cuidados do pai. Pelas 10 horas, depois de começar a chorar, o progenitor de 23 anos desferiu sucessivos murros e pontapés na cabeça e por todo o corpo do bebé, causando-lhe a morte.

Abusos sexuais, maus-tratos continuados e negligência são as principais violências perpetradas pelos próprios familiares às crianças. Aos jornais, de longe a longe, regressam as expressões que se repetem por semanas, derivadas dos motivos mencionados acima, mas não só. Misturam-se entre elas. Interligadas. Por vezes confundidas. Infanticídio (crime cometido pela mãe durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora), homicídio infantil (crime cometido contra uma criança) e filicídio (ato deliberado de uma mãe ou pai matar o próprio filho ou filha). No local do crime, a polícia anda de um lado para o outro. O enigma. O que leva uma mãe, um pai ou um cuidador a matar um ser tão indefeso? A pergunta coloca-se, perturbadora, de todas as vezes que o país, em choque, toma conhecimento de mais uma história de arrepiar a alma.

Desta vez tocou à pequena Valentina – nove anos, assassinada no dia 7 de maio, pelo pai, na Atouguia da Baleia, em Peniche – voltar a trazer à tona o silêncio de tantos outros inocentes que, como ela, nunca deveriam ter padecido às mãos de tanta malvadez. De quem os devia amar, cuidar e proteger. As perguntas voltam iguais, sempre com o timbre da indignação. São lanças que se espetam na cabeça. Como pode uma mãe, um pai ou um cuidador matar um ser que é “seu”? Que mal podem ter feito? Porque o fazem? Onde vão buscar a coragem?

Carlos Alberto Poiares, psicólogo forense, presidente da Direção da Associação para a Intervenção Juspsicológica e vice-reitor da Universidade Lusófona, analisa o cenário do geral para o particular, apesar de neste último caso só agora se começar a saber alguns dos contornos. No entender do especialista, “há aqui uma série de traços comuns” nos crimes contra crianças que, “derivam de problemas ao nível da saúde mental” dos pais ou familiares. “Estou cansado de dizer que a saúde mental é o parente pobre da saúde em Portugal, espero que agora haja motivos para se investir mais nesta área.”

Mas clarificar os problemas de saúde mental “não desculpa ninguém, pode é agravar uma situação”. Revirando a memória coletiva, pelas diversas crianças mortas pelos pais em Portugal, “em contexto de violência conjugal, como sendo as principais vítimas de retaliações nos desentendimentos a propósito da regulação do exercício das responsabilidades parentais”, reclama, desde logo, que “em todos esses processos ambos os pais sejam objeto de avaliação psicológica forense”.

A dureza das palavras toca em cheio na ferida. “Ficamos chocados quando os casos aparecem nas notícias. Depois, o choque passa; depois, voltamos a ficar quando vão a julgamento. É importante que isto seja estudado a sério para não haver decisões que embarcam com as modas dos tempos, como esta em que os filhos tanto estão com a mãe, como com o pai. Isso nem sempre funciona.” Porque pode resultar no uso dos filhos como arma de arremesso em relações “que prolongam quezílias” e tratam os filhos como “bolinhas de pingue-pongue”. Da realidade de Valentina apenas se sabe que os pais eram separados e que, à data da morte, a menina estava na casa do progenitor a passar uma temporada mais prolongada.

Qual foi o papel da madrasta na história: foi desencadeante ou passiva? Sabe-se que não queria a menina na sua casa. O corpo foi tapado ou disfarçado no pinhal? Eles queriam que o caso fosse descoberto rapidamente, por isso não o esconderam convenientemente? Se não tiveram a intenção de matar a criança porque não chamaram o 112? Mais perguntas de Carlos Alberto Poiares, que se diz “tentado a pensar”, pelos elementos que dispõe, “que houve intencionalidade” de matar. “A linguagem não-verbal diz também muito.” Nas imagens televisivas, durante o tempo em que a menina esteve desaparecida, viu-se um pai de carapuço à porta da casa. “Havia encenação. Contudo, pareceu-me um sujeito tranquilo, não só sabia o que tinha acontecido como não parecia preocupado com a criança, mas consigo.”

O especialista volta ao ponto inicial. “Esta miúda, com a idade que tinha, até já podia picar a mãe ou o pai. Irritá-los. E não faz mal desafiar. Faz parte da racionalidade do adulto perceber isso.” Para o pai chegar a este ponto, supõe o especialista, “ou estava num estado crítico mental ou já havia o instinto de agressão, de violência”. “Claro que agora este pai deve ser avaliado. O meu ponto é: se calhar, já devia ter sido quando foi gerido o poder paternal pelo tribunal.” Um trunfo que poderia ser usado “para prevenir mortes de inocentes”.

Rui Abrunhosa Gonçalves, professor na Universidade do Minho e psicólogo forense da Unidade de Consulta em Psicologia da Justiça e Comunitária, onde se dedica sobretudo à avaliação pericial e intervenção junto de ofensores violentos e perigosos, faz questão de frisar que “estes acontecimentos em que os pais matam os filhos são raros”. Explicando que, por norma, “são casos associados a processos de regulação parental e a divórcios litigiosos em que um pai ou uma mãe decidem que a morte dos filhos é a melhor saída para aquela desgraça toda”, o chamado “homicídio por compaixão, piedoso ou por altruísmo”. Todavia, há outras situações, “ainda mais raras”, em que “não existe nada relacionado com custódia parental”. Como, por exemplo, “uma questão mental ou homicídio involuntário por acidente, às vezes com dolo”.

No caso da pequena Valentina, e para que se percebam as raízes do problema, o especialista põe o foco na dinâmica da família onde a criança estava inserida. “Era uma família reconstituída tanto quanto sabemos, mas havia aqui guarda partilhada ou não? Se sim, um regime decretado pelo tribunal ou ajustado à conveniência dos pais? O que se pode dizer sobre o pai? Sobre a madrasta? Sobre os meios-irmãos e sobre a própria mãe?” E a isto acrescenta um dado novo, originado pelas atuais circunstâncias, o confinamento devido à pandemia.

“A explicação dos crimes tem a ver com quem é a vítima, o ofensor e o contexto em que se realiza.” Se somos forçados, de um momento para o outro, a conviver 24 sobre 24 horas com as mesmas pessoas “isso vai afetar-nos”. Ser pai e mãe “não é fácil todos os dias”. E se “houver tensões no contexto familiar e histórico de violência”, o confinamento “vai agudizar isso tudo e torna-se, naturalmente, um fator relevante”. Rui Abrunhosa Gonçalves ressalva que há ainda muito para saber sobre o crime de Peniche. Embora, no seu entender, seja difícil colher a versão de acidente. “Em confinamento pode haver pressão que leve a perda de controlo. Se o pai fosse dar uma bofetada e a miúda caísse e daí proviesse a morte é uma coisa. Mas se envolve asfixia ou se se esconde o corpo, há intencionalidade.” São mais perguntas do que respostas.

Lia Moreira, pedopsiquiatra na clínica médica Arrifana do Sousa e perita de pedopsiquiatria forense, é mais uma voz que se junta ao coro. “A tendência de passar ao ato físico, numa altura de frustração, contrariedade, zanga ou raiva, já tem de existir com as pessoas, por muito que habitualmente seja controlado.” O que torna plausível, aos olhos de Lia Moreira, quem diz que não havia no pai de Valentina um padrão violento ou de maus-tratos.

A perita quer acreditar que “a mãe – preservada pelas autoridades no processo – não tinha noção ou desconhecia qualquer possível historial de agressividade por parte do pai”. Caso soubesse, e numa situação destas, “a revolta era maior, ia expor-se mais, dizer que houve pedidos de ajuda”. “E se não fosse ela, seria alguém do entorno dela, o que, até agora, não aconteceu.”

No final, quando já nada há a fazer, todos sabem que para o desastre pesaram muitos fatores. O contexto sociocultural, as características da personalidade, juntamente com a saúde mental (depressão, psicose, situação social, como desemprego, problemas financeiros e conflitos familiares). Serão esses motivos que estão a ajudar a deslindar o que aconteceu nas últimas horas de vida de Valentina. Porém, ainda que tudo possa ter agravado a crueldade do crime, na verdade, “nada o justifica, ainda mais contra uma criança”, remata Lia Moreira.

Neste sentido, a articulação melhorada entre a justiça e a saúde mental é apontada pelos especialistas como uma solução para mitigar o flagelo. Fazer uma avaliação minuciosa por parte de quem tem a responsabilidade de julgar – como de quem tem o cuidado de reabilitar – é uma luz ténue que ilumina o terreno adiante. Podem ser casos raros no panorama criminal, ainda assim continuam a ser muitos.

29 de novembro de 2010. Tiago Monteiro, dois anos, foi atirado à água numa ribeira na Serra das Minas, Sintra, pela mãe, que culpou um grupo de encapuzados, mas depois confessou.

23 de dezembro de 2012. Henrique e Raphael, 11 meses e três anos, foram trancados num quarto quando a mãe, Kelly Oliveira, num ato tresloucado incendiou a casa onde viviam. A mãe confessou em tribunal que matou os dois filhos para fazer sofrer o pai das crianças.

28 de janeiro de 2013. Ruben e David, de 13 e 12 anos, foram envenenados pela mãe, que não aceitou a decisão do tribunal de entregar a custódia dos filhos ao pai. Foram descobertos dois dias depois, dentro de um carro.

9 de fevereiro de 2013. Martim, autista, 12 anos, foi atirado pela janela do 4.º andar de um hotel pela mãe, professora com depressão, que se suicidou de seguida.

18 de agosto de 2014. Leonor, uma bebé de quatro meses, ficou com 50% do corpo queimado por ter sido mergulhada em água a escaldar pelos pais que depois puseram sal nas feridas. Não resistiu à tortura.

8 de abril de 2015. Henrique Barata, cinco meses, foi morto pelo pai, de 33 anos, com uma facada no peito, depois de a companheira lhe ter dito que queria pôr fim à relação. De seguida, o homicida mandou um vídeo do crime à mãe da criança.

15 de fevereiro de 2016. Samira e Viviane, de 19 meses e 4 anos, morreram afogadas na praia. Foram atiradas à água pela mãe. O real motivo para o crime nunca foi esclarecido.

5 de fevereiro de 2019. Lara, dois anos, foi morta pelo pai para se vingar da ex-companheira. O homem foi encontrado morto no mesmo dia em que o cadáver da criança foi recuperado pelas autoridades no interior de um carro. A mãe da menina já veio a público confessar que tem revivido o seu pesadelo pelas fotografias da pequena Valentina.

Estes são processos longos. Lentos. Doridos. Dos quais ninguém sai inteiro. Depois do choque inicial, quem fica tem de lidar com o decorrer dos trâmites judiciais, com as notícias, com as imagens, com o recordar persistente e traumático, que todos os anos teima em regressar. Valentina foi a vítima mais recente. Se nada mudar, não será a última.

IN “noticias magazine”