Muitos dos protagonistas dos recentes tumultos em França na sequência da morte do jovem Naël eram tão ou mais novos do que a vítima, um fenómeno que não é novo, sobretudo em motins urbanos nos subúrbios, de acordo com vários especialistas.
Segundo dados das autoridades, um terço dos cerca de 3.500 detidos durante a onda de violência que atingiu várias cidades francesas eram menores de idades, incluindo muitos adolescentes de 13 e 14 anos, e o ministro do Interior francês estima que a idade média dos autores dos motins que deixaram o país ‘a ferro e fogo’ seja de 17 anos, precisamente a idade do jovem franco-argelino morto a tiro por um agente da polícia num controlo de trânsito a 27 de junho.
“A presença dos adolescentes não é nova nestes processos. É importante ter presente que a morte de Naël, com 17 anos, ocorre na sequência de um controlo policial. Muitos dos visados pelos dispositivos de controlo policial, muito presentes no quotidiano dos contextos sociais em apreço, são precisamente jovens, e muitos deles rapazes menores de idade”, observa, em entrevista à Lusa, Virgílio Borges Pereira, professor de sociologia na Universidade do Porto.
Este professor catedrático, coautor de um trabalho de comparação entre as classes médias-baixas de Portugal e França, nota que se estima que, na anterior onda de violência urbana similar registada em França, em 2005, também na sequência da morte (acidental) de dois jovens de origem africana que fugiam a um controlo policial, a idade média dos envolvidos era de 16 anos.
“Não é novo que jovens menores de idade se envolvam nestes acontecimentos”, diz.
Também o historiador Thibault Tellier, especialista em subúrbios e autor do livro “Humanizar o betão” comentou à imprensa francesa que, “desde o final dos anos 70, os motins urbanos envolvem sobretudo jovens”, e o que poderá ser surpreendente agora é “a extrema violência destes bandos urbanos, que parecem mais organizados”.
Um fator que parece ter desempenhado um papel importante nos motins deste ano, e na sua organização, foi o recurso às redes sociais, de tal modo que o Presidente francês, Emmanuel Macron, além de apelar à responsabilidade dos pais dos autores da onda de violência e pilhagem, apontou o dedo ao “papel considerável” das novas tecnologias na propagação dos tumultos.
Macron considera que plataformas como Snapchat, TikTok e Telegram são utilizadas para filmar eventos violentos e organizar concentrações ilegais, tendo na passada terça-feira, num encontro com cerca de duas centenas de autarcas, sugerido a possibilidade de limitação ou mesmo bloqueio de acesso a redes sociais em situações de motins, o que já desencadeou forte polémica em França, dado essa ser uma medida típica de regimes autocráticos.
Virgílio Borges Pereira nota que “a mediatização, em todos os seus estados, desempenha, há muito, um papel relevante na difusão de mensagens de crise” e “os chamados ‘media tradicionais’, a começar pelos canais televisivos, tiveram uma ação relevante na difusão dos acontecimentos de novembro de 2005”.
“Os responsáveis por estes meios de comunicação ter-se-ão apercebido da necessidade de prudência no tratamento mediático do problema. As redes sociais são um meio de comunicação hoje em dia amplamente utilizado, sem mediação em muitos casos; adivinha-se pelo uso que delas é feito, desde logo, pelos mais jovens, que estas possam servir também para mostrar ou demonstrar o que se passa e a dinâmica de conflitos em curso”, comenta.
Quanto à natureza dos motins, John Lichfield, que durante 20 anos foi correspondente do jornal britânico The Independent em Paris, escreve num artigo de opinião publicado no Politico que “trata-se, em grande parte, de uma insurreição sem objetivos: um grito de fúria, uma rejeição anárquica do governo, um ato de guerra de ‘gangs’ em grande escala”.
Apontando que os tumultos não têm um cariz político, “embora sejam influenciados pela política venenosamente dividida de França e a possam inflamar perigosamente”, Lichfield considera que tão pouco se trata de motins religiosos.
“Muitos dos jovens desordeiros podem ter um sentimento de identidade muçulmana sitiada, mas são movidos pela raiva, e não pela sua religião. Trata-se de uma insurreição, não de uma intifada”, escreve.
O sociólogo Borges Pereira concorda que “a dinâmica de «protesto» e a revolta, ou motim, nela inscrita é desencadeada por um acontecimento violento que envolve ação policial” e “não haverá motivos políticos imediatos no seu desenvolvimento agora, tal como estes não foram evidentes nos acontecimentos de novembro de 2005”.
Na sua opinião, “não há um fator único” na raiz de tumultos como o deste ano, da mesma forma que “não é pertinente homogeneizar estas populações e estes contextos”.
“Desde logo, não são todos os habitantes destes contextos que se envolvem em ações violentas. São grupos de adolescentes e de jovens, quase sempre rapazes, presentes no espaço público destes contextos e expostos à presença, muito assertiva, da polícia nestes locais”, reforça.
Para a analista Marta Mucznik, do ‘think tank ‘ (grupo de reflexão) European Policy Centre, baseado em Bruxelas, há uma “crescente polarização entre o ‘stablishment’, as elites, e as populações mais vulneráveis que vivem em condições mais frágeis, nos subúrbios”.
“É claramente uma revolta contra o sistema, também contra o racismo e agressividade da polícia francesa dirigida a jovens de origem magrebina, mas acho que demonstra também uma incapacidade de saber gerir esta polarização e este descontentamento”, comenta em declarações à Lusa.