Às vezes, em consultório, quando os pais lhe perguntam «Como acha que o meu filho vai reagir?» referindo-se, quer ao divórcio, quer aos regimes de residência e visitas, a psicóloga Catarina Ribeiro responde: «Isso só daqui a 30 anos é que vamos mesmo saber.» Foi o que fizemos: fomos ouvir três mulheres, Sara Oliveira, Alexandra Mendonça e Maria Portugal, que, em criança, passaram pelo divórcio dos pais e por regimes de guarda, visitas e residência escolhidos e geridos pelos adultos. E que contam, na primeira pessoa, que marcas ficaram, o que recordam, como mudou isso as suas vidas e aquilo em que acreditam. Ouvimos ainda especialistas sobre a presunção jurídica da residência alternada, uma solução que ganha cada vez mais força.

 

 

«Alívio. Foi o que senti quando os meus pais me disseram que se iam separar. Eles já faziam vidas separadas debaixo do mesmo teto e, mesmo assim, havia discussões nos raros momentos em que estavam na mesma divisão. Eu tinha 10 anos, o meu irmão 8, e os nossos pais fizeram questão de saber o que nós preferíamos.

Na altura os divórcios não eram tão frequentes, mas nós tínhamos referências entre amigos e era sempre aquele sistema de estar com o pai quatro dias por mês. Não queríamos aquilo para nós: gostávamos dos dois e queríamos estar o mesmo tempo com ambos.

Sara Lajas de Oliveira, 30 anos, consultora de comunicação. Casada, mãe do Diogo, com 1 ano, filha de pais divorciados desde os 10 anos. [Fotografia de Carlos Costa/Global Imagens]

O divórcio exigiu uma adaptação, mas foi pacífica. Honestamente, acho que as coisas mudaram para melhor. Passámos a ter tempo de qualidade com ambos, num ambiente tranquilo, o que não acontecia antes.Foi o meu pai que ficou na casa de família e a nossa mãe mudou-se para um apartamento pequeno, muito perto, para tornar a residência alternada possível. Começámos por estar uma semana em cada casa, mais tarde já ficávamos 15 dias de cada lado. O meu pai na altura trabalhava a cem quilómetros de casa e fazia das tripas coração para nos ir buscar a horas quando estávamos com ele. Quando não conseguia, os meus avós ajudavam.

«Às vezes pergunto ao meu marido: “Se deixássemos de nos entender, eras capaz de ver o Diogo só de 15 em 15 dias? Era o melhor para o nosso filho?” Ele, claro, responde que não.»

Lembro-me de fazermos puzzles ou vermos filmes com o meu pai. Ele sentava-se no sofá, a meio dos dois, e fazia-nos festas nas costas. Com a minha mãe, ajudávamos a fazer o jantar. Não consigo imaginar não ter tido estes momentos diários com ambos e sinto-me grata por eles por nos terem dado esta oportunidade.

Estou casada há quatro anos. O meu marido também é filho de pais divorciados e estava com o pai só aos fins de semana. Ele achava o meu regime de residência alternada muito esquisito, mas com o tempo começou a perceber que fazia sentido.

Agora, que temos um filho de ano e meio, às vezes pergunto-lhe: “Se deixássemos de nos entender, eras capaz de ver o Diogo só de 15 em 15 dias? Achas que era o melhor para o nosso filho?” Ele, claro, responde que não.»

Alexandra Mendonça: «O meu pai criou duas filhas independentes, responsáveis e educadas»

«Um dia a minha mãe chegou a casa e disse que queria o divórcio. Ia mudar-se e não ia levar as filhas. Precisava de tempo e espaço. Deixou-me a mim, com 9 anos, e à minha irmã, com 6, entregues ao meu pai. Toda a gente pensou que seria temporário. Não foi.

Um ano depois, em tribunal, manteve a decisão. A guarda foi entregue ao meu pai, mesmo tendo ele menos recursos financeiros e nenhum suporte familiar. Foi assim até sairmos de Loulé para estudar em Lisboa, dez anos depois. A minha mãe pagava uma pensão de alimentos e tinha direito a dois fins de semana por mês.

Alexandra Mendonça, 37 anos, enfermeira. Separada, mãe da Margarida, de 8 anos, filha de pais divorciados desde os 9 anos. [Fotografia de Gustavo Bom/Global Imagens]

Houve fases em que passava muito tempo sem a ver, noutras passava quase todos os dias na loja dela, depois da escola, para lhe dar um beijinho. Eu não exteriorizava, mas sentia raiva, rejeição e abandono. E custou-me muito o preconceito: alguns pais que não deixavam as filhas brincarem connosco. Diziam: “Duas meninas a serem criadas só por um homem? Não vai sair dali coisa boa.

Quando me separei do pai da Margarida, ainda durante a gravidez, achava óbvio que ela devia passar o mesmo tempo com os dois.

O meu pai criou duas filhas independentes, responsáveis e educadas, capazes de se safarem em qualquer situação – eu até sei trabalhar com um berbequim e fazer instalações elétricas. Claro que sou mais chegada a ele do que à minha mãe.

Foi ele que me criou, que esteve presente em todos os momentos, até na primeira menstruação. Perdoei a minha mãe, mas há uma cicatriz que ficou, um distanciamento emocional. Acho que não é uma relação tão próxima como as mães e filhas costumam ter. Mas ela é uma avó disponível e extraordinária para minha filha Margarida. Talvez tente compensar a disponibilidade que não teve para mim.

Quando me separei do pai da Margarida, ainda durante a gravidez, achava óbvio que ela devia passar o mesmo tempo com os dois. Eu sabia o que é crescer quase sem um dos pais e não queria isso para a minha filha. Mas às vezes, na prática, não é possível fazer o que é melhor em teoria. Hoje ela vive só comigo, com visitas ao pai de 15 em 15 dias – quando ele as cumpre. Nunca o critico à frente dela.

Seja qual for a relação que eles venham a ter no futuro, será construída pelos dois, não por influência do que eu penso. Como a relação que criei com o meu pai e com a minha mãe foi fruto das opções de cada um.»

Maria Portugal «O divórcio e as responsabilidades parentais, antes de serem uma questão jurídica, são um processo emocional.»

«Os meus pais divorciaram-se em 1979, tinha eu 6 anos e a minha irmã 5. Não tenho memória de os ver juntos, mas tenho memória dos conflitos depois da separação. Nos primeiros tempos, quando o meu pai nos ia buscar, havia sempre discussões à porta de casa, como se nós não estivéssemos ali. Hoje sei que facilmente os adultos perdem o bom senso quando se divorciam. Na altura sentia apenas que preferia que eles não se encontrassem.

Olhando hoje para o que decidiram em relação a nós, não sei se foi a melhor opção. Mas percebo que há 39 anos fizeram aquilo que se fazia sempre: ficámos a viver com a minha mãe e passávamos os fins de semana de 15 em 15 dias com o meu pai. Com o tempo, passaram a existir outros momentos de contacto: ele ia buscar-nos a casa todas as manhãs para nos levar ao liceu.

Maria Portugal, 45 anos, psicopedagoga. Divorciada, mãe do Manuel e do Vicente, 14 anos e 8 anos. Filha de pais divorciados desde os 6 anos. [Fotografia de Bruno Raposo/Global Imagens]

Eu adorava e hoje valorizo imenso o esforço que fazia para termos esses momentos. Hoje com o meu pai tenho boa relação, com a minha mãe não há relação nenhuma, mas por razões que nada têm que ver com o passado.

Hoje sei que facilmente os adultos perdem o bom senso quando se divorciam. Na altura sentia apenas que preferia que os meus pais não se encontrassem.

Quando me separei do meu ex-marido, o nosso filho Manuel tinha 3 anos e o Vicente apenas dois meses. Eles começaram por estar com o pai um fim de semana de 15 em 15 dias. Mais tarde, quando o Manuel já tinha 8 anos, começou a dizer-me que achava injusto estar tão pouco tempo com o pai e o meu ex-marido propôs-me a residência alternada. Não adorei a ideia, mas não tinha razão para me opor.

É como costumo dizer às mães com quem trabalho: estamos programadas para achar que os filhos são nossos, mas os filhos são do mundo. Agora, desde há um mês, os miúdos estão de novo mais tempo comigo: como o pai está com um projeto profissional que lhe ocupa muito tempo achámos que fazia mais sentido assim.

Sou psicopedagoga e, depois do meu divórcio, comecei também a trabalhar com pais separados porque percebi a falta de suporte que têm. Criei em 2013 um grupo de Facebook chamado Mães na (Par)entalidade para sensibilizar as mães para as questões da equidade na parentalidade e depois um projeto chamado divorcio.com.pt onde, em parceria com uma advogada, aconselhamos as famílias a lidarem com as dificuldades e tentamos que o acordo jurídico não descure as necessidades emocionais de todos. O divórcio e as responsabilidades parentais, antes de serem uma questão jurídica, são um processo emocional.»

Fotografia de Fernando Marques

O tema não é novo e as dúvidas também não, mas o debate intensificou-se nos últimos meses com a entrega, na Assembleia da República, da petição em prol da presunção jurídica da residência alternada pela Associação Portuguesa de Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, e com a tomada de posição, pró ou contra, de várias figuras da esfera pública e associações da sociedade civil.

Esta semana tomou posição sobre a matéria, defendendo que a legislação portuguesa deve prever expressamente a residência alternada dos filhos de pais separados, possibilidade atualmente omissa na lei.

Como adiantou ontem o Diário de Notícias, num parecer enviado à Assembleia da República, a propósito da petição que defende que as crianças filhas de pais separados devem coabitar com ambos os progenitores, o órgão que supervisiona os magistrados é breve na apreciação: «O princípio de que, salvo motivos ponderosos, a residência dos filhos de pais separados deve ser com ambos os progenitores, de forma alternada e com possível adequação ao caso concreto pelo juiz, é de prever legalmente.»

Com esta deliberação, aprovada a 30 de outubro em sessão plenária do CSM, o órgão que supervisiona os juízes junta-se à Procuradoria-Geral da República (PGR), que defendeu também que a residência alternada de filhos de pais separados deve ficar expressamente prevista no Código Civil. Mas a PGR vai mais longe, defendendo que a alternância entre a casa de ambos os pais deve ter um estatuto privilegiado relativamente a outras soluções – sendo a mais comum viver com um deles (na maior parte dos casos, a mãe), com visitas ao outro. E, sustenta a Procuradoria, a coabitação deve ser ponderada mesmo quando não haja acordo entre os progenitores.

Pesem algumas diferenças de opinião, que persistem, numa coisa todos parecem de acordo: o que é melhor para uma criança não se reduz a uma fórmula.

A literatura científica é clara neste domínio: «quando as competências parentais estão asseguradas – e é muito importante avaliar essas competências –, o regime que pode ser mais favorável para a criança é o que lhe permite ter um contacto alargado com ambos os progenitores», diz a psicóloga forense do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses do Porto.

«A lei já permite a residência alternada, mas o legislador a aplica-a pouco porque ainda há o mito generalizado de que o regime é perigoso.»
Joaquim Manuel de Silva, juiz

Mas a realidade é diversa. Por isso, embora acredite que, de futuro, o envolvimento parental igualitário vai ser cada vez mais uma realidade, a psicóloga não concorda com uma alteração legislativa que torne o regime a regra. «Qualquer presunção jurídica é limitadora, pondo em causa o olhar único que cada criança e família merecem.»

Para a psicóloga, uma vez que a lei atual já permite o regime, a prioridade deve ser a sensibilização, informação científica e boa assessoria técnica dos magistrados, «para que a decisões judiciais, sobretudo quando não há acordo entre os pais, não sejam tomadas com base em preconceitos sem fundamento, como por exemplo, que as mães, por definição, são melhores cuidadoras.»

Num estudo da Netsonda para a Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, divulgado em setembro deste ano, 68,6% dos inquiridos (mil pessoas com filhos) entende que, após a separação de um casal, as crianças devem ficar com os dois progenitores, alternadamente. Mas há um fosso gigante entre o que os portugueses pensam e o que fazem.

Embora não existam dados oficiais, juízes e outros atores do sistema judicial asseguram que os acordos que estipulam residência alternada não ultrapassam os oito a dez por cento. E os dados dos Censos de 2011 parecem confirmar a visão de quem trabalha na área: das famílias monoparentais com filhos menores de 18 anos, 89,2 por cento são femininas.

O que confirma que, na realidade, vigora uma «regra única» não oficial: são as mulheres que ficam, quase sempre, com a responsabilidade das crianças. É por isso que o juiz Joaquim Manuel de Silva, do Tribunal de Família e Menores de Mafra, apoia a introdução da presunção jurídica.

«Passar de uma relação diária para dois fins de semana por mês potencia emoções como tristeza, zanga, revolta, sentimentos de abandono e rejeição.»
Rute Agulhas, psicóloga

«A lei já permite a residência alternada, mas o legislador a aplica-a pouco porque ainda há o mito generalizado de que o regime é perigoso. Cabe ao legislador fazer a sua obrigação pelo direito da criança a ter pai e mãe e, também, por uma sociedade mais igualitária.»

Às críticas centradas no facto de esta alteração querer forçar, também, um regime único que não serve a todos, o magistrado defende que não é o caso. «Uma presunção jurídica é uma proposta política, traduzida em lei, que indica apenas que este é o regime preferencial. Não é uma imposição, é uma indicação, cabendo ao juiz verificar sempre, no concreto, se a solução serve àquela criança ou não.»

Uma coisa é certa: para que se estabeleça uma relação de vinculação segura da criança, tem de haver presença em continuidade. «Não bastam meras visitas ou convívios, estes não serão suficientes para que haja um adequado envolvimento parental», diz a psicóloga forense Rute Agulhas.

«Passar de uma relação diária para dois fins de semana por mês potencia emoções como tristeza, zanga, revolta, sentimentos de abandono e rejeição, com inúmeras consequências negativas possíveis para a criança e para o relacionamento com esse progenitor.»

A psicóloga defende que não faz sentido que a residência alternada seja aplicada só por acordo entre os progenitores ou, como refere a petição de oposição à presunção jurídica, «havendo confiança de cada um dos pais na competência do outro como progenitor». «É uma questão muito subjetiva que pode ser usada por um dos pais para comprometer a hipótese de residência alternada.

A psicóloga defende que os efeitos negativos podem ser uma realidade, mas não decorrem do divórcio por si, mas antes da forma como ele é gerido pelos adultos.

A alusão à não competência do outro tem de ser devidamente justificada, de forma consistente e fundamentada.» A sua posição sobre o regime vai ao encontro da da maioria dos outros especialistas: nem sempre não, nem sempre sim.

Se o desacordo entre pais é muito evidente e ninguém está disposto a ser flexível, é inevitável avançar para um processo judicial. Mas cada vez mais pais tentam resolver o assunto fora dos tribunais.

«De há alguns anos para cá, noto um aumento dos pedidos de consultas por pais ou mães que querem aconselhar-se sobre a melhor forma de gerir todo o processo, desde o momento de dar a notícia à criança até à ajuda na tomada de decisões quanto ao exercício conjunto das responsabilidades parentais», diz a psicóloga clínica Rita Castanheira Alves, diretora do projeto A Psicóloga dos Miúdos.

Os pais preocupam-se sobretudo com o impacto do divórcio na criança, tanto imediato, como a longo prazo. A psicóloga defende que os efeitos negativos podem ser uma realidade, mas não decorrem do divórcio por si, mas antes da forma como ele é gerido pelos adultos.

Textos de Sofia Teixeira (life.dn.pt)