culpa é do Mago Merlin. Ou, se quisermos viajar para ainda mais longe no tempo, talvez mesmo dos antigos egípcios que tentavam apaziguar os espíritos dos mortos com requintadas oferendas de bens terrenos. Esperava-se que, assim, devidamente saciados, chegassem a bom destino e não voltassem para infernizar os vivos.

O Halloween, que hoje se vende nos hipermercados para deleite de miúdos e angústia suplementar dos adultos, tem as suas origens no riquíssimo manancial das tradições celtas pré-cristãs. No final do verão, encerrado o ciclo das colheitas, celebrava este povo o festival de Samhain, durante o qual eram levantadas, em cada aldeia, enormes fogueiras.

Acreditava-se que na noite que corresponde sensivelmente ao nosso 31 de outubro os espíritos dos mortos visitavam quem tinham deixado por cá. O fogo, bem como as celebrações dos sacerdotes, os famosos druidas, servia para exorcizar quaisquer espíritos malignos que se dispusessem a acompanhar as boas almas nessa “peregrinação” anual.

Acreditava-se que na noite que corresponde sensivelmente ao nosso 31 de outubro os espíritos dos mortos visitavam quem tinham deixado por cá

O culto dos mortos e o ritual de sazonalmente lhes apaziguar a “inveja” pelos que vivem e a saudade do que deixaram é, no entanto, tão universal quanto a espécie humana. Não admira, por isso, que quer os invasores romanos (que também erguiam altares domésticos aos antepassados) quer os cristãos tenham assimilado essa tradição celta, em detrimento de outras (como a crença em fadas ou nos espíritos da natureza, como os das árvores) que foram perseguidas com furor.

O cristianismo primitivo passou, assim, a festejar o All Hallow”s Day (também conhecido por Dia de Todos-os-Santos), destinado a recordar os mártires sacrificados em nome da Igreja. Originalmente celebrado a 13 de maio (curiosa coincidência com a festa de Nossa Senhora de Fátima), foi transferido, no século VIII, por determinação papal, para o final de outubro, de modo a coincidir com o Samhain que continuava a celebrar-se, aqui e ali, na Grã-Bretanha, Irlanda, França e no norte de Espanha. Devidamente cristianizada, a data continuava a evocar os santos mártires da Igreja, mas mantinha a crença de que essa era uma noite especial, em que, por artes mágicas, se abria um canal de comunicação entre vivos e mortos. Chamaram-lhe All-hallows-even, mais tarde Hallow Eve, depois Hallowe”en e, finalmente, Halloween.

“Flores para los muertos”

Na peça Um Elétrico Chamado Desejo, Tennessee Williams mostra-nos uma patética Blanche DuBois a assustar-se quando ouve uma mulher mexicana a anunciar, pelas ruas, a sua mercadoria “flores!, flores para los muertos”. Perdida na vida, sem rumo nem desígnio, Blanche, outrora uma beldade do sul dos Estados Unidos, sente aquelas palavras como o prenúncio da sua própria morte. Mas este é um dos pregões da tradicional Festa dos Mortos, celebrada um pouco por toda a América Central, sobretudo no México, precisamente entre 31 de outubro e 2 de novembro. A sua origem? A fusão do culto dos mortos celebrado nas civilizações pré-colombianas com o do cristianismo, levado para tais paragens pela colonização espanhola.

Em desfiles exuberantes (que muito têm inspirado a pintura, a literatura e o cinema) vemos, assim, algumas personagens típicas, como La Llorona (A Chorona), fantasma de uma mulher que andaria pelas ruas em busca dos filhos afogados no rio. A sua tragédia viria a ser eternizada pela muito popular canção de Chavela Vargas, justamente intitulada… La Llorona. A esta personagem há que acrescentar as dos Mariachis Muertos, as das Catrinas (evocando o fantasma de uma dama da alta sociedade a quem, no Além, de nada servem os esplendores passados) e sobretudo muitas caveiras em açúcar colorido, para deleite dos gulosos… vivos.

Crianças mascaradas andavam, de porta a porta, a pedir biscoitos para as almas. Mais tarde, por influência norte-americana, chegou o famigerado ultimato: “Doçuras ou travessuras?”

A função catártica parece unir todos estes festejos, em que o paganismo e a religião convivem em risonha (e rara) companhia. No Halloween anglo-saxónico também o peditório de guloseimas para acalmar os espíritos se tornou tradição há muito, muito tempo. Crianças mascaradas (sobretudo de Jack-O-Lantern) andavam, de porta a porta, a pedir biscoitos para as almas. Mais tarde, por influência norte-americana, chegou o famigerado ultimato: “Doçuras ou travessuras?” Também as abóboras cortadas para se transformarem em assustadoras cavacas, iluminadas por dentro, são, em parte, uma importação dos Estados Unidos. Embora na Europa já se usassem vários frutos e legumes de outono com esse fim (em várias regiões de Portugal usaram-se, durante muito tempo, as cabaças ocas e alumiadas, à maneira de archotes), o “protagonismo” das abóboras deve-se em boa parte ao seu “sucesso” made in Hollywood.

E as bruxas, o que têm que ver com tudo isto, ao ponto de se dizer ser esta a sua noite? Na verdade, quase nada, a não ser o facto de, em várias culturas, se atribuir à véspera de Todos- os-Santos estranhos poderes, irrepetíveis em qualquer outra noite. Em alguns pontos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos acredita-se que se uma jovem olhar atentamente para um espelho à meia-noite em ponto de 31 de outubro verá refletida a imagem do seu futuro marido. Noutros lugares, revivem-se ainda velhos rituais de convívio, como o de escrever desejos secretos num papel, usando leite à maneira de tinta invisível. Metidos numa casca de noz, são lançados ao lume. Aqueles que, por ação das chamas, se tornarem legíveis serão bafejados pela sorte.

O pão por Deus português

Do Halloween dizem os seus detratores que é uma colonização cultural vinda dos Estados Unidos, imposta pelo cinema e pela televisão, e um atentado ao nosso costume, bem português, de pedir pão por Deus, pelas portas das aldeias, a 1 de novembro. Seja porque os celtas também andaram pelo norte da Península Ibérica seja porque a piedade cristã o estimulava, a verdade é que já na Alta Idade Média, no território que viria a ser Portugal, havia o ritual de oferecer pão, bolos, vinho e outros alimentos aos defuntos. A prática era de tal maneira generosa que, no ano de 572, o Concílio de Braga teve de proibir que se levasse tal quantidade de alimentos aos túmulos.

Adaptado na forma, o ritual manteve-se, porém, ao longo dos séculos. Ainda hoje, neste mesmo dia, as crianças (até aos anos 50 também participavam os pobres, mas Salazar vedar-lhes-ia o acesso a tal costume, numa tentativa de tornar a pobreza… invisível) juntam-se em pequenos bandos a pedir o pão por Deus, alegadamente para distribuir por quem mais precisasse. A quem nada oferecesse rogava-se uma praga em verso ou deixava-se uma ameaça, mais simbólica do que real, entre risos e correrias.

Na Galiza, chama-se a tal costume migallo e, na Inglaterra, soul cake. No Brasil, para onde foi levado pelos portugueses, está ainda muito vivo em regiões como Santa Catarina, onde a prática de recitar versos porta-a-porta foi substituída por corações de papel acetinado com mensagens de amor e carinho. A “paga” da dedicação e da criatividade será, então, o pão por Deus. Aqui e ali, abóboras iluminadas, caveiras de açúcar, bolinhos de erva-doce ou simplesmente gomas do supermercado são, na verdade, aspetos da mesma festa e do mesmo desejo – o de afastar a morte e esconjurar o mal. Porque que las hay, las hay, e, diz o povo, nunca se sabe. E, no entretanto, comamos, bebamos e sejamos felizes porque amanhã…