Perder um animal de companhia pode ser tão ou mais difícil do que lidar com a perda de um amigo ou familiar. Mas este sofrimento tende a não ser legitimado pelos outros, dizem-nos dois investigadores do luto que defendem formação na área para médicos e enfermeiros veterinários.
O primeiro sonho de Patrícia Caeiros foi ter um cão. É assim que a ex-médica veterinária, agora médica de 33 anos, nos começa a falar de Lady. Lembra-se de estar encostada à janela, a tentar controlar-se para não abrir o cortinado e destruir a surpresa da mãe. Entretanto, naquele dia, de dentro do carro acabou mesmo por saltar uma cauda preta a abanar. Mais de 20 anos depois, lembra-se de estar a olhar para a cadela que viveu com ela 17 anos e meio e pensar que “tinha chegado a altura de uma das decisões mais difíceis” que já teve de tomar.
Lady tinha deixado de comer, não interagia, não se conseguia levantar, vivia com dores e tinha uma úlcera ocular a agravar-se. “Estava em fase final da vida e considerámos que optar pela cirurgia seria fazê-la passar por dias muito dolorosos antes do fim, para além de que a possibilidade de morrer numa mesa cirúrgica seria um fim demasiado frio depois de tudo o que nos deu e de tudo o que vivemos com ela.” Acrescenta: “Tendo já a experiência que tinha e sendo a favor da eutanásia, foi uma decisão tomada quando a vida dela já não tinha qualidade.”
Na altura, em Julho de 2015, estava de férias na casa de família, na Costa Alentejana — onde, depois da cremação, espalharam as cinzas e plantaram uma árvore. “Foi muito duro ter de lidar um dia inteiro com essa decisão. Por outro lado, também deu tempo para cada um de nós se despedir. Ainda hoje, todos os dias me lembro dela.”
Patrícia é a autora de um dos mais de cem testemunhos que temos vindo a receber por email desde que, no final de Maio, dissemos que queríamos conhecer o teu cão — não um cachorrinho, mas um animal velhinho. São verdadeiras homenagens, escritas por quem já perdeu um animal de companhia ou por quem começa a antecipar o fim de uma relação de vários anos. Escreveram-nos a relatar “uma das experiências mais dolorosas” das suas vidas. A contar como alimentaram o animal com uma seringa, como passaram noites acordados, como tiveram de “esconder a dor” e ir trabalhar no dia seguinte. Ou, como na crónica que Sandra Costa, editora da Fugas, assina, a dizer que, até perder o Verão, não sabia que se podia chorar por um cão.
Mas pode-se. E, muita gente chora. Até porque lidar com a perda de um animal companheiro pode ser tão ou mais difícil do que lidar com a perda de um amigo ou familiar. Quem o diz é Miguel Barbosa, psicólogo clínico, e Ricardo R. Reis, biólogo, dois investigadores que cruzam caminhos no Núcleo Académico de Estudos e Intervenção sobre Luto, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. “Tanto os estudos qualitativos e quantitativos, assim como a nossa experiência clínica na área de intervenção no luto por perda de animais companheiros, demonstram que a intensidade e a duração do luto por perda de um animal podem ser semelhantes, e até superiores, ao luto por perda de uma pessoa a quem se estava fortemente vinculado”, notam.
Mas ao contrário do que acontece com as perdas humanas — onde dificilmente se ouviria alguém dizer “Era só teu amigo” —, o luto por perda de um animal tende a ser pouco reconhecido pela sociedade. “É comum as pessoas sentirem que o seu sofrimento não é legitimado pelos outros e terem de lidar com comentários que o desvalorizam e ao significado que o animal representava na sua vida.” Frases como “Era só um cão”, por exemplo. “As pessoas referem que se sentem ridículas por procurarem ajuda, levando frequentemente ao isolamento social e complicações de luto”, alertam. Quem procura ajuda profissional, muitas vezes fá-lo por outros motivos, “apenas abordando a problemática do animal quando sentem que o seu sofrimento será validado e não minimizado”.
O “investimento afectivo” e o significado do animal na vida do cuidador são dois dos factores que podem contribuir para a intensidade do luto. Mas há mais: a“ausência ou fragilidade da rede de apoio”, o facto de “a perda do animal [poder] reactivar perdas anteriores não integradas”, a “vivência de sentimentos de culpa associados à decisão de eutanásia”. E, até,“quando o investimento afectivo no animal deriva de uma deslocação ou substituição de outras relações”.
Pelo menos duas pessoas nos escreveram a dizer que só se “arrependiam de não terem conseguido manter-se calmos”, antes da injecção letal. Uma outra jovem leitora adoptou uma cão com 13 anos e partilha outro receio: “Fala-se do medo e da dor de os perder, mas sinto que nenhuma se equipara à que sinto neste momento, a de que ele esteja a sofrer, que queira ir embora.”
“Muitas das vezes, as pessoas só precisam de falar”
Não é “pela ciência”, mas por “verdadeira paixão pelos animais”, que Patrícia Pimenta é médica veterinária — paixão essa que gosta de imaginar ser transversal a todos os colegas de profissão. É especialista em gatos e, também por isso, a fotografia que nos enviou (uma provocação, numa fotogaleria protagonizada por cães) é de Gretel, uma gata de 18 anos e uma só orelha. Abandonada, já tinha a pata rapada pronta a levar a injecção quando Patrícia, 27 anos, entrou na sala da clínica. Levou-a para casa.
Na altura, Gretel pesava “um quilograma, arrastava os membros posteriores, tinha pneumonia, uma úlcera no olho direito, completamente surda”. Era, como várias associações se justificaram à clínica veterinária que a resgatou, “não adoptável”. “Não havia garantias que ela fosse sobreviver. Mas achei que não era justo eutanasiá-la.”
Quando se trabalha numa clínica ou num hospital veterinário, a eutanásia é um processo rotineiro, “quase diário”. “Diziam-me que, eventualmente ia acabar por me habituar. Mas acho que só vai ficando mais difícil. Há cada vez mais memórias que vão aparecendo.”
Há dias piores, normalmente quando é uma situação inesperada, causada por um atropelamento, por exemplo, ou quando está em causa a vida de um animal que já segue há tempo suficiente para se ter criado uma relação a três. “Criam-se laços com os animais e o tutor e é difícil gerir as expectativas deste, até por causa do investimento financeiro e emocional que foi feito.” Também há casos em que os donos querem simplesmente “uma solução rápida” e mais barata do que o tratamento ou os cuidados exigidos para a sobrevivência do animal. Ouvir isto, diz, nunca é fácil.
Depende do local e do profissional, mas para Patrícia a despedida nunca é apressada. Principalmente se há crianças na família ou se existe alguém que ainda não se despediu do animal. São muito raras as pessoas que não querem estar presentes. Antes da injecção letal, Patrícia seda o animal e dá mais uns minutos para os cuidadores se despedirem, mais uma vez, a sós. “A maior parte das pessoas está à espera que o gato adormeça logo e não é isso que acontece.” Avisa que, se tiverem alimentado o animal antes — “algo que os tutores costumam gostar de fazer” —, ele vai provavelmente vomitar; vai haver libertação de fezes ou urina; tremura muscular ou suspiros mais prolongados.
“As pessoas precisam de acompanhamento e falta muito apoio na perda de um animal de companhia”, reconhece. Os médicos e enfermeiros veterinários já não lidam apenas com a componente clínica, mas também com os sentimentos dos clientes-humanos. E “não estão formados” para isso, defende todos aqueles com quem o P3 falou. Num estudo feito por Miguel Barbosa e Ricardo R. Santos, estudantes de todas as faculdades de medicina veterinária do país reconheceram a necessidade de competências de comunicação clínica e o processo de luto “serem abordados de um modo integrado em disciplinas clínicas ou, mesmo, constituir uma disciplina autónoma”. Até para se protegerem de situações de “não-adesão terapêutica, clientes difíceis e procedimentos terríveis como a eutanásia.”
Além de formação, Patrícia sugere a criação de uma linha de apoio, anónima, como existe em Edimburgo, onde agora trabalha. Uma vez, uma pré-adolescente de 12 anos que a tinha visto na clínica procurou-a no Facebook e enviou-lhe mensagens a dizer que os amigos “não a compreendiam”, depois de ela ter perdido a cadela com quem tinha vivido a vida toda. “Muitas das vezes, as pessoas só precisam de falar.”
Agências funerárias e cemitérios para animais
Embora existam serviços funerários e até agências funerárias para animais, cremações e cemitérios, estes rituais fundamentais para o processo de luto não fazem ainda parte do nosso guião social. Tal como não é possível tirar dias de nojo, por exemplo, um direito que a Provedora dos Animais de Lisboa já defendeu.
Em Portugal, existem cemitérios para animais no Jardim Zoológico de Lisboa, em Nogueira da Regedoura, Santa Maria da Feira e, mais recentemente, em Lagos, no Algarve. Este último, um investimento municipal de 50 mil euros, teve origem numa proposta de orçamento participativo e foi inaugurado em Setembro de 2017. Desde aí, foram sepultados — em compartimentos vulgarmente conhecidos como “gavetões” — 12 cães e quatro gatos, longe da lotação máxima (39).
Os preços para os primeiros três anos em que é proibido abrir a sepultura variam entre os 67 e os 84 euros, dependendo do tamanho e peso do animal sepultado. Depois, é possível “prolongar a concessão do módulo de inumação por períodos de dois anos (com um custo de 42 euros), no máximo de duas renovações
IN “O Publico”