Fake news: sites portugueses com mais de dois milhões de seguidores

O negócio é rentável. A audiência dos sites de desinformação permite um retorno de milhares de euros pagos pela publicidade do Google. Só no Facebook, mais de dois milhões seguem estas páginas portuguesas.

mentira começa no título. Um dos mais bem-sucedidos sites de desinformação em Portugal chama-se Bombeiros 24. Mas não tem nada que ver com bombeiros. Quem pesquisa este nome no Google encontra um anúncio a um serviço falso: “Bombeiros 24 horas”. Se carregar no link, em vez de uma linha SOS, ou de um contacto, encontra apenas um site. E de desinformação.

No último mês, esta página conseguiu ter mais de 939 mil partilhas dos seus textos no Facebook. Nessa rede social, a página tem um nome ainda mais enganador: Bombeiros Portugueses. Tem quase 300 mil seguidores. Gente real, educada, preocupada. Mas o conteúdo não deixa muitas dúvidas sobre o que faz na realidade: desinformação. No dia 4 de novembro uma “notícia” do site citava o coordenador do Observatório da Emigração, Rui Pena Pires, dizendo que Portugal precisa de imigrantes. No Facebook, os administradores do site mostram o que pensam sobre o tema: “Afirmações um tanto ou quanto ridículas. Talvez se dessem valor ao trabalho dos portugueses houvesse mais gente disposta a trabalhar em certas áreas.”

A maior parte da desinformação deste site vem, no entanto, de outra forma. É um falso jornal de crime. Nos seus links várias pessoas “perdem a vida”, outras são apanhadas a traficar droga, outras desaparecem, outras fingem “ter cancro”, há gatos torturados e asfixiados, crianças vítimas de abuso em hospitais. “Mãe perde a própria vida”, “homem perde a vida”, “agente da PSP tira a sua vida”, são alguns dos títulos desde o início de novembro.

De quem é a página Bombeiros 24? É um segredo muito bem guardado. O IP do site é o 149.202.52.180 e está registado em França, no servidor OVH SAS, em Roubaix. Toda a informação sobre os seus donos e autores é secreta. Depois de muita pesquisa, é possível saber, pelo menos, o método que garante o êxito e o financiamento desta página.

Sendo um dos sites mais populares nas redes sociais portuguesas, o Bombeiros 24 tem uma conta aberta nos serviços de publicidade do Google (com esta identificação: pub-9747752864249330). A empresa norte-americana não revela os contactos ou identidade dos seus clientes. Mas é possível saber que o mesmo gestor deste site português recebe, pela mesma conta, dinheiro de publicidade para um segundo site português. Chama-se Bilbiamtengarsada, assim mesmo, e tem 286 mil seguidores só no Facebook. É, ao mesmo tempo, um meio de replicar a desinformação da página dos falsos bombeiros e um lucrativo sistema de financiamento dos donos de ambos os sites.

Desinformação e software malicioso

Nessa segunda página está em destaque o caso do tratamento das unhas da deputada do PS Isabel Moreira, com a legenda “estes crls fartamse de trabalhar” (citação exata). No Bombeiros 24 o tom é outro – a história “está a indignar os portugueses”. Tem mais de mil “gostos”. Logo abaixo publicam uma fotomontagem do professor da Universidade Lusófona que participou no Prós e Contras da RTP, segurando um cartaz que diz “por favor não deem beijinhos aos velhinhos”. Tem 2,8 mil gostos.

Numa análise mais profunda é possível detetar que o site Bombeiros 24 espalha nos computadores de quem o visita um tipo específico de software malicioso – um affiliate, que permite aos administradores do site receber dinheiro de empresas de vendas online.O truque é simples: o site deixa uma espécie de cookie nos computadores dos leitores que passam assim a ficar associados ao Bombeiros 24. Quando essa pessoa usar aquele computador para, por exemplo, comprar alguma coisa na Amazon, a empresa americana fica a saber que a sua venda foi “sugerida” pelo site português e paga-lhe uma comissão. Além de ceticismo, os frequentadores desta página precisam de um bom antivirus.

Esta é mais uma prova de que o negócio das fake news é rentável. O que poucos portugueses conhecem é a real dimensão deste “mercado”.

“Notícias” mais divulgadas vêm de sites anónimos

Ao copiar as notícias, opiniões e entrevistas dos jornais que de facto existem e estão registados, estes sites ganham dinheiro, pago pelo Google, em publicidade. Mas não só: a sua influência (alcance, número de visitantes), que é medida oficialmente, faz que tenham primazia no algoritmo do Facebook. Quanto mais populares forem, mais visíveis e mais rentáveis serão. É um círculo vicioso.

Segundo dados do sistema de análise usado pela redação do DN para avaliar a sua audiência em redes sociais, na última semana, dois dos três artigos escritos em Portugal com mais partilhas no Facebook foram feitos por páginas de desinformação. No último mês, três artigos dos cinco mais replicados vieram de sites que imitam órgãos de comunicação social, mas não estão registados na entidade reguladora (ERC), nem têm donos identificáveis. A intenção de enganar é clara. Muitos destes sites apresentam-se como se fossem órgãos de comunicação social. Há um Semanarioextra. Um Jornaldiario. Um Noticiario.com. Um Magazinelusa. Nenhum destes sites é, de facto, um órgão de informação. Nenhum deles tem registo nem apresenta o nome de uma única pessoa real associada. Há mais de 40 páginas de desinformação portuguesas. É uma rede profissional. Ou, se quisermos, uma indústria de desinformação.

No dia-a-dia, estes sites garantem o seu tráfego fazendo plágio de artigos de outros jornais. Vários destes sites copiam diariamente textos do Correio da Manhã e conseguem aparecer nos rankings com muito mais partilhas do que as do autor original. Para que isso aconteça, estes sites precisam de equipas para difundir os seus links nas redes sociais. E de um sistema de grupos, páginas, redes de contactos.

Tudo isto fez nascer uma indústria em Portugal. Cada um destes sites tem vários outros, semelhantes, registados no mesmo IP. O Lusopt, por exemplo, partilha a “morada” com o EventoXXI e o JornalQ. O Vamoslaportugal partilha o mesmo IP com outros seis sites de desinformação, como o Lusonoticia.

“É uma forma de ganhar dinheiro extra”

Quase todos estes sites estão registados, de forma anónima, em países como EUA, França, Alemanha ou Canadá. A mentira começa aí.

No servidor Cloudfare em Phoenix, Arizona, EUA, está registado o Altamente. Com a mesma identificação (Google Analytics) há vários outros sites ali registados dos mesmos donos: Cura Natural, 1001 Ideias, Muito Bom, Muito Fixe e outros.

O registo é falso do princípio ao fim. Como administrador está registada uma empresa, a Javali Productions, que não existe. A morada é: Rua de Cima e de Baixo, Porto. Também não existe. E o telemóvel do administrador é, como os leitores terão adivinhado, falso também: 911111111.

O que significa outra coisa: além dos crimes praticados pela desinformação propriamente dita (difamação, plágio, entre outros), esta atividade faz-se também à revelia das normas fiscais. O dinheiro ganho em publicidade, pago pela Google, muito dificilmente será declarado. Os trabalhadores destas “empresas” clandestinas não farão descontos sobre o que recebem.

O DN conseguiu descobrir um desses trabalhadores, da falsa Javali Productions. Sem querer ser identificado, este engenheiro informático revelou-nos que “quando metia artigos era tudo feito pela internet a partir de minha casa, não tenho qualquer conhecimento dos proprietários”. Na sua opinião, a Javali “não é uma empresa”, é antes uma “forma de poder ganhar um dinheiro extra”.

Visto por estes sites, Portugal é um país onde o crime violento é diário. É também um país com “curas caseiras para o cancro”.

Este jovem informático diz ainda que nunca questionou o que era publicado. “No tempo em que estive a trabalhar nos websites apenas tratava de escrever os artigos e por vezes partilhar nas redes sociais. Eram os fundadores que escolhiam o conteúdo que ia ser lá colocado, grande parte vindo de websites brasileiros, pois esse era grande parte do mercado a atingir.”

Há ainda um perfil de Facebook de uma pessoa que se diz “administrador” de um destes sites. É um fotógrafo do Porto, que não respondeu à mensagem enviada pelo DN. Esta rede não é pequena. Por alguma razão vários destes sites estão alojados no mesmo servidor. Só a conta dos Bombeiros 24 (alojada em França) é comum a 62 outros serviços da internet (contas em redes sociais, chats, etc).

Esta desinformação, ainda por cima anónima, apresenta várias motivações. É uma “forma de ganhar dinheiro”, por um lado, mas é também uma tentativa de formar uma opinião entre as pessoas que seguem e partilham estes sitesHá uma leitura comum, por muito que algumas destas páginas pareçam estar a publicar anedotas e só espaçadamente se dediquem a temas sérios. Visto por estes sites, Portugal é um país onde o crime violento é diário. É também um país com “curas caseiras para o cancro”.

Mentiras políticas

Como é comum no mundo inteiro, este tipo de sites quer ainda criar um modelo de político. “Bolsonaro: O mundo está a mudar…as pessoas estão cansadas de falinhas mansas!” (Semanarioextra). “Putin: Quem não queria um destes?” (Tafeio.com.pt).

Enquanto elogiam um político “especial”, estes sites mostram que há razões para que os cidadãos portugueses sejam desconfiados. “Até hoje, nenhum chinês morreu em Portugal. Não há nenhum registo! Estranho…”, escreve a página Diariopt. A mentira é tão óbvia que torna o êxito do tema difícil de entender: Teve 21,3 mil partilhas no Facebook, no último mês.

Animais, segurança, corrupção e política são os temas dominantes neste mundo paralelo da desinformação em português. “Descontos de Assunção Esteves para a Segurança Social já renderam dois milhões”, escreve a página Vamoslaportugal, antes de acrescentar que “o exemplo vem de cima. Quem pode, rouba!” A informação sobre a ex-presidente da Assembleia da República, do PSD, é falsa e manipulatória. Baseia-se na reciclagem de uma notícia, de 2012, que dava conta da opção de Assunção Esteves por receber apenas a sua reforma de juíza do Tribunal Constitucional, prescindindo do seu vencimento como terceira figura do Estado.

Há mais contas falsas sobre pensões. O Diariopt chegou às 105 mil partilhas no Facebook com esta: “A vergonha no aumento das pensões. Infelizmente poucos conhecem.” A fotografia partilhada mostra António Costa a sorrir e apresenta um número errado. No Orçamento do Estado em negociação no Parlamento está previsto – e acordado entre PS, PCP, BE e Os Verdes – um aumento mínimo de dez euros para as pensões mais baixas. O site de desinformação diz que o aumento é de um euro.

Outro tema recorrente é o da xenofobia. O Lusopt escreve que a “Câmara de Lisboa despeja pessoas para construir mesquita” e, um pouco adiante, acrescenta uma outra história, com o mesmo pano de fundo, em que “nove freiras ficam grávidas num mosteiro que abriga refugiados”.

Esta é a narrativa que circula rapidamente pelas redes sociais. A forma organizada como se propaga, hoje, tem todas as condições para se tornar relevante no próximo ano (com eleições europeias e legislativas). Aí, tal como já aconteceu em vários países (EUA, Brasil, Itália, Suécia, para falar apenas nos exemplos mais recentes), o papel da desinformação pode ser decisivo.

Por princípio, não há muitos eleitores dispostos a aceitar opiniões ou factos falsos ditos por alguém que surja no meio da rua de cara tapada e voz distorcida. Mas há milhões de portugueses (pelo menos metade dos eleitores habituais) que aceitam ler e até reproduzir o que dizem estes sites anónimos.